domingo, 10 de dezembro de 2023

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


O Sublinhado Saramaguiano de hoje lembra o discurso que José Saramago proferiu, por ocasião da entrega do Nobel da Literatura, durante o banquete oferecido por Suas Altezas reais em que criticou os governos e os poderosos do mundo pelo incumprimento da Declaração dos Direitos do Homem, dizendo, muito claramente que se «chega mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante.»

Naquele dia comemoravam-se os 50 anos hoje comemoram-se os 75 anos do documento.

Nada mudou!

Hoje, num discurso realizado no Fórum de Doha, no Qatar, António Guterres disse que o Conselho de Segurança está "paralisado pelas divisões geoestratégicas", que comprometem a sua capacidade de encontrar soluções para a guerra na Faixa de Gaza.

"A autoridade e a credibilidade do Conselho de Segurança foram seriamente comprometidas" pela sua resposta tardia ao conflito, um dano à sua reputação que foi agravado pelo veto dos Estados Unidos, na sexta-feira, a uma resolução que apelava para um cessar-fogo em Gaza.

O projeto de resolução foi preparado após a invocação sem precedentes por Guterres do artigo 99 da Carta das Nações Unidas, que permite ao secretário-geral da ONU chamar a atenção do Conselho de Segurança para uma questão que "pode colocar em perigo a manutenção da paz e segurança internacionais".

 Os Estados Unidos, aliados de Israel, reiteraram a sua posição contrária a um cessar-fogo.

É este o discurso proferido por José Saramago:

 

"Cumpriram-se hoje exactamente 50 anos sobre a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não têm faltado comemorações à efeméride. Sabendo-se, porém, como a atenção se cansa quando as circunstâncias lhe pedem que se ocupe de assuntos sérios, não é arriscado prever que o interesse público por esta questão comece a diminuir já a partir de amanhã. Nada tenho contra esses actos comemorativos, eu próprio contribuí para eles, modestamente, com algumas palavras. E uma vez que a data o pede e a ocasião não o desaconselha, permita-se-me que diga aqui umas quantas mais.
Neste meio século não parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que moralmente estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante.
Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lho permitem aquelas que efectivamente governam o mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava do ideal da democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. Pensamos que nenhuns direitos humanos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem e que não é de esperar que os governos façam nos próximos 50 anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra. Com a mesma veemência com que reivindicamos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa tornar-se um pouco melhor.
Não esqueci os agradecimentos. Em Frankfurt, no dia 8 de Outubro, as primeiras palavras que pronunciei foram para agradecer à Academia Sueca a atribuição do Prémio Nobel da Literatura. Agradeci igualmente aos meus editores, aos meus tradutores e aos meus leitores. A todos torno a agradecer. E agora também aos escritores portugueses e de língua portuguesa, aos do passado e aos de hoje: é por eles que as nossas literaturas existem, eu sou apenas mais um que a eles se veio juntar. Disse naquele dia que não nasci para isto, mas isto foi-me dado. Bem hajam portanto."

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