terça-feira, 5 de dezembro de 2023

OLHAR AS CAPAS


Gloria In Excelsis

Histórias Portuguesas de Natal

Apresentação e selecção de Vasco Graça Moura

Colecção Mil Folhas

Jornal Público, Porto, Dezembro de 2003

No dia seguinte, dia de Natal, era feriado, tal qual como hoje. Andava muita gente a passear nos campos, e o menino Jesus andava na estrada, a brincar com a carroça. Claro que olhava, com desconfiança, para todas as carroças que passavam, a ver se alguma delas era igual à sua. Mas nenhuma era. Foi brincando, brincando, e já se esquecia desta história toda, quando viu um homem, lá ao longe, num sítio onde andava menos gente, sentado numa pedra e a fazer riscos no chão, com uma varinha. O menino Jesus teve pena dele, quis avisá-lo e aproximou-se.

Ora, o menino Jesus falava uma língua esquisita – o aramaico – que muitos dos judeus não entendiam, e ainda hoje, segundo parece, não entendem. Mas ele não tinha culpa; era a que lhe ensinaram em pequeno, mal começara a estender os braços… Os meninos ainda se lembram de querer agarrar nas coisas que estão longe? É isso.

Aconteceu, então, que o homem não só não percebeu o que o menino lhe dizia, como se zangou e o enxotou, ameaçando-o com a vara. É claro que o menino Jesus deitou a fugir. Quando já estava suficientemente longe quis ver… E o que viu?

Ao lado do homem, parara uma carroça exactamente igual à sua, puxada por um tipo que já metera conversa com o outro sentado. E parecia que a conversa era engraçada, porque ambos se riam muito. Só da boca do que fazia de cavalo saía um fumozinho branco, que o menino Jesus muito bem conhecia.

Por tudo isto é que o Natal é pai e tem barbas brancas, para se distinguir do outro, que traz brinquedos do inferno, brinquedos que, como os meninos também sabem, são feitos neste mundo, tal qual como os outros brinquedos.

Ora como se vê por esta história, e ao contrário do que até eu próprio julgava quando comecei a escrevê-la, houve, não uma só, mas inúmeras razões, para o Natal ser pai e ter barbas brancas. Para acabar, não me perguntem de quem ele é pai. Não façam perguntas tolas, como as pessoas crescidas. Muito em segredo, sempre digo que não sei ao certo, o que sei não posso dizer… e, de resto, talvez os meninos venham a saber mais do que eu.

 

(Excerto do conto Razão de O Pai Natal Ter Barbas Brancas de Jorge de Sena).

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