sexta-feira, 31 de maio de 2024

O OUTRO LADO DAS CAPAS


Cedo me disseram que temos direitos mas também deveres. Estes últimos ficam, normalmente, no bolso do colete.

Comprei este livrinho livrinho em 1970, num alfarrabista, o Fausto, na Rua Angelina Vidal. Custou-me vinte e cinco tostões.

Será um perfeito lugar comum dizer que este é um livro importantíssimo.

Copio o artigo 23º:

«     1 - Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego.
       2 - Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual.
       3 - Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de protecção social.
       4 - Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para a defesa dos seus interesses.

Não poderia deixar de citar as palavras que José Saramago, num dos seus Discursos da Suécia, entendeu lembrar ao mundo:

«Cumpriram-se hoje exactamente 50 anos sobre a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não têm faltado comemorações à efeméride. Sabendo-se, porém, como a atenção se cansa quando as circunstâncias lhe pedem que se ocupe de assuntos sérios, não é arriscado prever que o interesse público por esta questão comece a diminuir já a partir de amanhã. Nada tenho contra esses actos comemorativos, eu próprio contribuí para eles, modestamente, com algumas palavras. E uma vez que a data o pede e a ocasião não o desaconselha, permita-se-me que diga aqui umas quantas mais.
Neste meio século não parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que moralmente estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante.
Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lho permitem aquelas que efectivamente governam o mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava do ideal da democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. Pensamos que nenhuns direitos humanos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem e que não é de esperar que os governos façam nos próximos 50 anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra. Com a mesma veemência com que reivindicamos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa tornar-se um pouco melhor.

OLHAR AS CAPAS


Os Direitos do Homem

Prefácio: Sottomayor Cardia

Capa: Santos de Almeida

Colecção Caderno Seara Nova

Seara Noca Editora, Lisboa, Dezembro de 1968

Saibamos servir-nos dela. Saibamos que a Declaração Universal compromete a Declaração Universal compromete a responsabilidade de todos e cada um de nós.

Do prefácio

AS NOVAS SÓ QUE EU SEI

As novas só que eu sei,

Os Boletins do Dia

Da Imortalidade.

 

As Vistas só que eu vejo –

Quer amanhã, quer hoje –

Acaso Eternidade –

 

O Único que encontro

E Deus – Única rua

A Existência – e mais

 

Se outras Novas houver –

Ou mais notáveis Vistas

Eu Te direi.

 

Emily Dickinson em 80 Poemas

quinta-feira, 30 de maio de 2024

POSTAIS SEM SELO


Às vezes, a maior de todas as viagens é a distância entre duas pessoas.

Autor desconhecido

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

MARCADORES DE LIVROS


Marcador de livros, oferta da Livraria «Pó dos Livros» que, infelizmente, fechou portas há uns anos atrás.

Colaboração de Aida Santos


EM BUSCA DE FLORES AZUIS NO DESERTO

O que se passa em Gaza com campos de refugiados a serem sistematicamente bombardeados, é um horroroso e inqualificável crime.

As bombas usadas no ataque israelita que, no domingo, matou 45 palestinos, num campo de deslocados perto de Rafah, foram fabricadas nos Estados Unidos.

As fronteiras morais já foram largamente ultrapassadas.

A Casa da Branca, face a este acidente mortífero, é de opinião que Israel ainda não ultrapassou as linhas vermelhas impostas a Netanyahu.

OLHARES


Perto um do outro, no alto de uma das colinas de Lisboa, existem dois miradouros a que poucos ligam importância.

Estamos no alto da Penha de França, junto à Igreja de Nossa Senhora da Penha de França. Ao lado está o comando da Polícia, que até ao 25 de Abril foi o quartel da sinistra Legião Portuguesa. Atrás da igreja está um reservatório de água, a malta chamava-lhe o pote d’água. Ali encontra-se o miradouro da Penha de França que, juntamente com o miradouro do Monte Agudo, sito na Rua Heliodoro Salgado, é algo a que os lisboetas prestam pouca, ou quase nenhuma, atenção e que as entidades entendem não os divulgar pelos turistas.

Na Rua Mestre António Martins, na Freguesia da Penha de França acabou por vir ao mundo, estava guerra a findar pela Europa.

Pelas noites de Verão, quando não havia televisão, a malta juntava-se por ali e ficávamos a olhar os filmes que por aquele tempo passavam na esplanada da Cervejaria Portugália.

Perguntarão:

-  Como é que miúdos podem ficar de longe a «olhar filmes.

Já disse que não havia televisão e as noites quentes, convidavam as pessoas a vir para as portas das casas, para os miradouros, para os jardins. Mas dezenas de pessoas encostavam-se ao muro para ver as imagens que, lá longe, passavam no écran da esplanada da Cervejaria Portugália. Apenas as imagens. Nem som, nem leitura de legendas, apenas imagens a correr.

Coisas mesmo de putos.

Simples e comovente…

Terá servido para que um dia explodisse o gosto pelo cinema, o dele e o da malta do bairro?

Curiosamente nunca viu um filme sentado na esplanada da Portugália. E tanto que, em miúdo, o desejou. Quando a possibilidade de o fazer chegou, já não exibiam filmes.

Ainda hoje sente o calor, o cheiro daquelas noites dos seus oito/nove anos a olhar os filmes da Portugália. O regresso a casa. As janelas abertas a respirar o fresco da noite, as pessoas a conversar nas ruas. Um perfume de cravos e sardinheiras.

O tempo da inocência total.

Os caminhos para o Cinema Paraíso.


No cimo da tal rua onde nasceu, encontra-se a Escola de Luísa de Gusmão.

A fachada do edifício exibe um grande painel de azulejos de Querubim Lapa, 400 azulejos num espaço de 30 metros. Alguns azulejos do painel têm vindo a cair. A Câmara Municipal de Lisboa, a Junta de Freguesia, dizem não ser sua competência, do Ministério da Educação não há qualquer resposta.

À frente, da escola, onde agora está um parque de estacionamento, existia uma vila e num dos seus edifícios, situava-se uma sopa dos pobres. Ali não havia espaço para os pobres comerem e então desciam a rua e sentavam-se nesta praceta, mesmo em frente do prédio onde nasceu, viveu a infância e adolescência, a comerem a sopa e o naco de pão escuro.


OLHAR AS CAPAS

Adolescente Agrilhoado

José Marmelo e Silva

Colecção  Autores Portugueses nº 5

Editora Arcádia, Lisboa, Setembro de 1958

«Que de todos aqueles por quem luto, seja eu o último a ter conforto!» - confessou ao grupo de mineiros que instruía.

ÉS COMO UMA TERRA...

És como uma terra

que nunca ninguém disse.

Não esperas nada

a não ser a palavra

que brotará do fundo

como fruto entre os ramos.

Um vento que se aproxima.

Coisas secas e mortas

embaraçam-te e vão no vento.

Membros, palavras antigas.

Tremes no Verão.

 

Cesare Pavese em Virá a morte e Terá os Teus OlhosVirá a morte e Terá os TeusOlhos

quarta-feira, 29 de maio de 2024

POSTAIS SEM SELO

Uma pessoa esperta resolve um problema; uma pessoa sábia evita-o.

 Albert Einstein.

EM BUSCA DE FLORES AZUIS NO DESERO

«Perante o desprezo pelo direito internacional, os mandados do Tribunal Penal Internacional, as decisões do Tribunal Internacional de Justiça e o agudizar dos abusos (vale a pena ler a reportagem do “Washington Post” sobre a organização de milícias de extrema-direita que destroem ajuda humanitária aos palestinianos com a complacência das autoridades e ajuda de militares e polícias) e a pressão da opinião pública, se não é agora que se reconhece a Palestina, nunca será. Esperar que o serviço esteja terminado em Gaza é ser cúmplice do que se está a fazer em Gaza.

Ao não acompanhar o movimento de vários Estados da União, alguns com peso político, para retirar a Europa do isolamento moral em que se encontra, Portugal fica, usando um termo com que embirro, do lado errado da história. Num momento em que o líder de um Estado ocupado, com quem somos justamente solidários, nos visita, é exibir ao mundo o rosto cínico da incoerência. Não podemos exigir solidariedade com os ucranianos se ignoramos o sofrimento dos palestinianos.»

Daniel Oliveira no Expresso

OLHAR AS CAPAS


 

Varanda dos Meus Amores

Norberto de Araújo

Livraria Aillaud e Bertrand, Lisboa, 1922

Quarta-feira de cinzas! Entra-se na quaresma. Atrás desta Páscoa virá outra Natividade e outro Carnaval; voltarão os homens a arrepende-se e voltarão as hossanas e os reis magos, e o mundo continuará entre arrependimentos e revoltas íntimas, preparação de novas cinzas, até à liquidação dos sistemas planetários…

POEMA DE SETE FACES

Quando nasci, um anjo torto

 desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

 

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

 

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

 

O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

 o homem atrás dos óculos e do bigode.

 

Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

 se sabias que eu era fraco.

 

Mundo mundo vasto mundo

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

 

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

 

Carlos Drummond de Andrade em Antologia Poética

terça-feira, 28 de maio de 2024

POSTAIS SEM SELO


Um dia será necessário prescindir de notícias.

Frédéric GrosFrédéricGros

OLHAR AS CAPAS

Os Velhos Marinheiros

Jorge Amado

Colecção Século XX nº 48

Publicações Europa-América, Lisboa, Junho de 1965

Até hoje permanece certa confusão em torno da morte de Quincas Berro D’Água. Dúvidas por explicar, detalhes absurdos, contradições no depoimento das testemunhas, lacunas diversas. Não há clareza sobre hora, local e frase derradeira. A família, apoiada por vizinhos e conhecidos, mantém-se intransigente na versão da tranquila morte matinal, sem testemunhas, sem aparato, sem frase, acontecida quase vinte horas antes daquela outra propalada e comentada morte na agonia da noite, quando a Lua se desfez sobre o mar e aconteceram mistérios na orla do cais da Baía. Presenciada, no entanto, por testemunhas idóneas, largamente falada nas ladeiras e becos escusos, a frase final repetida de boca em boca, representou, na opinião daquela gente, mais que uma simples despedida do mundo, um testemunho profético, mensagem de profundo conteúdo (como escreveria um jovem autor do nosso tempo).

ALEGRES CAMPOS, VERDES ARVOREDOS

Alegres campos, verdes arvoredos,
claras e frescas águas de cristal,
que em vós os debuxais ao natural,
discorrendo da altura dos rochedos;

silvestres montes, ásperos penedos,
compostos em concerto desigual,
Sabei que, sem licença de meu mal,
já não podeis fazer meus olhos ledos.

E, pois me já não vedes como vistes,
não me alegrem verduras deleitosas,
nem águas que correndo alegres vêm.

Semearei em vós lembranças tristes,
regar-vos-ei com lágrimas saudosas,
e nascerão saudades de meu bem.

 

Luís de Camões em Sonetos

segunda-feira, 27 de maio de 2024

QUOTIDIANOS


Ele tinha guardado, religiosamente, aquela garrafa de tinto de Portalegre, do tempo em que o Mário Soares fez por ali uma presidência aberta e a Adega Cooperativa celebrou a ocasião com uma excelente edição de tintos.

O vinho já não lembra para que estava guardado, qualquer coisa especial, uma qualquer celebração, que num qualquer dia pudesse acontecer, não importava o quê.

Um dia, almoço de amigos, a ocasião era excelente para abrir a garrafa.

Não a encontrou. Beberam-se outros vinhos nesse almoço.

Mais tarde, veio a saber que o filho mais velho fizera uma festa com amigos cá em casa, e usaram a garrafa de Portalegre-presidência-aberta-de-Mário-Soares, na sangria.

Crime de lesa pátria.

Coisas do Arco do Vinho.

Quem anda à chuva molha-se.

OLHAR AS CAPAS


Ruy Belo: Coisas de Silêncio

Duarte Belo e Rute Figueiredo

Capa e fotografias: Duarte Belo

Textos: Luís Miguel Cintra, Manuel Gusmão, Rute Figueiredo

Assírio & Alvim, Lisboa, Junho de 2000

Reconhecemo-nos ainda. Gostamos do mar e da terra a céu aberto. Árvores, searas, pedras, montes. Da praia. Dos campos. Das igrejas. Das aldeias e das cidades com passado e com ruas muito grandes. Dos textos antigos. De cartas e postais. E dos livros. E do povo. Das procissões. Dos cafés. Do cemitério. De ir ao cinema. Ler o jornal. Mozart e Bach. Não sabemos pôr gravata. Ainda temos camisas aos quadrados e vestimos camisola. Não gostamos da manha e da astúcia. Somos pobres. Temos o sol e só o que nos toca o coração. Alguns amigos mais. E carregamos nos ombros o amor da vida toda e uma enorme saudade de Deus. Somos católicos. Acreditamos na alegria e na pureza. Sabemos que o homem é Deus feito carne.

Reconhecemo-nos. Somos assim generosos, é verdade. Sem esforço. E não vamos mudar. Não sei se somos um grupo nem seremos com certeza uma geração, somos uma maneira de ser. E na poesia do Ruy nos encontramos.

Sou e quero ser irmão ou herdeiro dessa gente. Como o Duarte, legitimamente. E reconheço nas fotografias do Duarte, como na poesia do Ruy, a passagem das nossas vidas, os lugares, as nossas casas, os objectos a que nos afeiçoámos ou demos sentido, a memória dos nossos corpos, dos nossos encontros, dos nossos grandes amores ou da nossa paixão. A minha casa. Reconheço também o meu pai. Mas reconheço sobretudo o espaço. Ou o tempo. «O Tempo Sim o Tempo Porventura». Estas fotografias, o seu pudor, são o retrato de uma ausência. São fotografias da morte. Violentas. O que resta de um cidadão, a mudança das idades, as coisas que tinha, os lugares onde esteve ou onde estava, a roupa que vestiu, o que ficou do que escreveu. São o retrato do tempo que foge, imenso. Mas mais ainda, tanto, o retrato do que falta. Falta a vida neste vazio, neste espaço que vai da terra ao céu. E esse espaço, esse vazio, é exactamente o espaço das palavras do Ruy. O espaço do que vive. Perante a morte, constantemente, nesse único momento que se confunde com a solidão mas abraça o mundo inteiro e que nos dá a nós a dimensão da vida. Tão imensa diante do tempo que talvez nem na paixão possa encontrar a sua desejada desmedida. Tão grande que convoca Deus. E já não sabemos de que ausência falamos.

Texto de Luís Miguel Cintra

QUANDO AMANHECEU AINDA NÃO SABIAS

Quando amanheceu ainda não sabias.
Havia uma alegria anódina,
uma alegria de haver palavras
de serem repetidas e manhãs caídas
como chuva de outono
e ser abril ainda,
abril
como degraus de subir o silêncio
e mastigar a fome, degraus de cair
no lugar de haver cansaço
e ser noite.

 

Quando amanheceu ainda não sabias.
Quando amanheceu eu já existia
dentro de ti.
E quando soubeste que nas ruas
se dizia a manhã de ser abril,
abriste a porta de sair da noite,
desceste os degraus de repetir
a manhã que se dizia
e foste abril, mãe,
abril ainda.


José Rui Teixeira


Nota do Editor:  Este poema de José Rui Teixeira foi tirado do Público de 30 de Abril de 2024.

José Rui Teixeira nasceu no Porto, em 1974. É doutorado em Literatura pela Universidade do Porto. Dirige o projecto editorial Officium Lectionis e a Cátedra de Sophia (Universidade Católica). É director pedagógico do Colégio Luso-Francês, professor, ensaísta e poeta.

Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução. Este poema foi tirado do Público de 30 de Abril de 2024.


domingo, 26 de maio de 2024

POSTAIS SEM SELO


A consciência parece ser tudo porque inclui saber que não é.

Autor desconhecido

COMEÇOS DE LIVROS


«O lendário Rio Grande, naquele trecho onde o cruzámos e naquela época do ano, não passava de um magro fio de água a escorrer melancólico pelo leito cor de cobre brunido.

- A seca – explica lacónico o chefe do comboio, sujeito baixo, de agudo perfil azteca.

A nossa composição – duas carruagens com pouquíssimos passageiros – era arrastada por uma velha locomotiva, lente e sem fôlego.

- Tu vês – murmurei para a companheira –nenhuma pessoa em seu juízo perfeito faz esta viagem de comboio…

- Os loucos viajam de avião – sorriu ela. – Até agora não tenho de que me queixar.»

Começo de México de Erico Veríssimo.

Teria os 13/14 anos, o meu pai encontrou-me num dos maples da Biblioteca da casa a ler este livro.

-Estás a ler um grande livro de um lindíssimo país.

Tinha toda a razão.

O epílogo do livro, com uma bonita capa de Bernardo Marque, compadre do poeta José Gomes Ferreira:

«É bom estar de volta. Tenho de confessar a mim mesmo que já sentia falta desta ordem, desta limpeza. Deste conforto.

Mas ai! O tempo passa, a saudade do México começa a assaltar-me com tanta frequência que termino numa confusão de sentimentos.

Eu sabia que o epílogo deste livro não podia ser feliz! Estou talvez condenado a oscilar o resto da vida entre esses dois amores, sem saber exactamente o que desejo mais, se o mundo mágico ou o mundo lógico. Só me resta uma esperança de salvação. É a de que, entre a tese americana e a antítese mexicana, o Brasil possa vir a ser um dia a desejada síntese.

Y quién sabe?»

A imagem deste texto, é um dos desenhos que Erico Veríssimo fez para ilustrar o seu livro. 

OLHAR AS CAPAS


O Meu Suicídio

Henri Roorda

Prefácio e Tradução: Rui Caeiro

E etc, Lisboa, Abril de 1993

Pensar, reflectir, é o produto de uma consciência imperfeita. A inteligência infinita não pensa: confunde-se com a estupidez absoluta! Deus certamente não pensa coisa nenhuma.

Quando me falam dos Interesses Superiores da Humanidade, não compreendo. Mas gosto de lombo de cabrito e do vinho de Borgonha. E sei o que pode haver de adorável na poesia, na música e no sorriso da mulher.

sábado, 25 de maio de 2024

LIVROS E JACARANDÁS, SEMPRE!


 No dia 29 de Maio abrem as barracas da Feira do Livro, no Parque Eduardo VII, para a sua 94ª edição, que fechará portas a 16 de Junho.

Terá dez novas barracas e os horários de segunda a quinta serão das 12h às 22h; às sextas e vésperas de feriado o fecho será às 23horas, aos sábados das 10h às 23horas; e aos domingos e feriados das 10h às 22,00 horas.
Recordo-me que já na edição do passado ano tive algumas dificuldades nos caminhos de subida e este ano, como mais barracas, acontecerão as mesmas dificuldades e, provavelmente, mais algumas.

Que seja tudo pelo amor dos livros, do cheiro dos jacarandás, do voo dos melros, dos pardais, de todas as magias que nos caem, vindas não se sabe de onde, ao longo dos passeios que em cada dia fazemos em tempo de Feira.

A ilustração é o pavilhão da «& etc», em tempos antigos, quando o Vitor Silva Tavares por aqui andava, das vezes, muitas, que no intervalo de vendas, falava da sua rica e vasta vida de fazedor de livros.

OLHAR AS CAPAS


 Cinema

Vinicius de Moraes

Prefácio: Eucanaã Ferraz

Capa: André Carrilho

Colecção Horas Extraordinárias

O Independente Global. Lisboa 2004

Sou um apaixonado de Cinema. Só Deus sabe como gosto de um boa fita, o prazer que me traz ver «Cinema», discutir, ponderar, escrever, até fazer Cinema na Imaginação. Acho mesmo que só a Música traz-me uma tão grande sensação de plenitude e gratidão.

Não vou aqui me gabar – mas vi Luzes da Cidade mais de vinte vezes. Aliás não seja por isso porque Otávio de Faria viu mais de trinta.

sexta-feira, 24 de maio de 2024

POSTAIS SEM SELO


Ter esperança não nos isenta de experimentar o medo, de sofrer violentamente com o abalo de terra de certos confrontos nossos com a fragilidade, de atravessar o ordálio das dúvidas.

José Tolentino Mendonça

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da imagem acima colocada.

OS DIAS VISTOS DO CAFÉ DO MONTE

«Já nós, pobres leitores, corremos como baratas tontas, desmiolados, sonâmbulos, tentando descodificar significados ocultos, prognosticando futuros, lendo sinais a que desejamos dar sentido único, pensando decifrar​ a “obra total”, enquanto colamos fragmentos. Somos personagens vagabundas do labirinto do tempo, largando migalhas na ilusão de um dia podermos voltar a casa. E é tal o desnorte e tão agigantado vai o atrapalhamento que apetece implorar por compaixão, como no poema de Vinícius em que se pede piedade até “dos homens públicos e em particular dos políticos / Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão/ Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes / Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também” .

 Ana Cristina Leonardo, da crónica de 29 de Março no Público.

OLHAR AS CAPAS


10 Anos de Teatro e Cinema em Portugal

1974-1984

Carlos Porto e Salvato Teles de Meneses

Capa: Ivone Ralha

Editorial Caminho, Lisboa, Agosto de 1985

 

O repórter perguntava a um velho trabalhador (alentejano) que idade tinha:

Velho – Tenho quatro anos.

Repórter – Como é isso?

Velho- Tenho quatro anos porque são feitos depois do 25 de Abril. Antes disso não conto.

Mário Castrim, Diário de Lisboa.

(Epigrafe colocada por Carlos Porto no início do livro.)

EM MEMÓRIA DE MIM MESMO

Tão-somente ter cessado.

 

Como se eu pudesse começar

onde cessou a minha voz, eu mesmo

o som de uma palavra

 

que não consigo articular.

 

Tanto silêncio

para trazer à vida

nesta carne apreensiva, o ribombar

do tambor das palavras

na interioridade, tantas palavras

 

perdidas na amplitude do meu mundo

interior, e assim ter sabido

que apesar de mim

 

eu estou aqui.

 

Como se fosse isto o mundo.


Paul Auster, copiado daqui.

quinta-feira, 23 de maio de 2024

OLHAR AS CAPAS

Contos

Hans Christian Andersen

Tradução: Carlos Loures

Colecção Livros de Bolso nº86

Publicações Europa-América, Junho de 1974

As rosas diante das mansardas haviam desabrochado. Kay e Gerda sentaram-se no banco, como noutros tempos. Tinham esquecido, como se de um pesadelo se tratasse, os frios esplendores da Rainha das Neves. A avó estava sentada ao sol e lia a Bíblia: «Se não fordes como as crianças», lia ela, «não entrareis no Reino dos Céus.»

Kay e Gerda olharam-se e compreenderam melhor que nunca o velho estribilho:

     

              As rosas passam e murcham. Mas em breve

              Voltaremos ao Natal e ao Menino Jesus.

 

Permaneceram durante muito tempo sentados, dando-se as mãos. Tinham crescido

E, apesar disso, continuavam a ser crianças, crianças nos seus corações.

ODE AOS LIVROS QUE NÃO POSSO COMPRAR

Hoje, fiz uma lista de livros, e não tenho dinheiro para os poder comprar.

É ridículo chorar falta de dinheiro
para comprar livros,
quando a tantos ele falta para não morrerem de fome.

Mas também é certo que eu vivo ainda pior
do que a minha vida difícil,
para comprar alguns livros
- sem eles, também eu morreria de fome,
porque o excesso de dificuldades na vida,
a conta, afinal certa, de traições e portas que se fecham,
os lamentos que ouço, os jornais que leio,
tudo isso eu tenho de ligar a mim profundamente,
através de quanto sentiram, ou sós, ou mal-acompanhados,
alguns outros que, se lhe falasse,
destruiriam sem piedade, às vezes só com o rosto,
quanta humanidade eu vou pacientemente juntando,
para que se não perca nas curvas da vida,
onde é tão fácil perdê-la de vista, se a curva é mais rápida.

Não posso nem sei esquecer-me de que se morre de fome,
nem de que, em breve, se morrerá de uma fome maior,
do tamanho das esperanças que ofereço ao apagar-me,
ao atribuir-me um sentido, uma ausência de mim,
capaz de permitir a unidade que uma presença destrói.

Por isso, preciso de comprar alguns livros,
uns que ninguém lê, outros que eu próprio mal lerei,
para, quando se me fechar uma porta, abrir um deles,
folheá-lo pensativo, arrumá-lo como inútil,
e sair de casa, contando os tostões que me restam,
a ver se chegam para o carro eléctrico,
até outra porta.

27/6/44

 

Jorge de Sena de Tempo de Coroa da Terra em 40 Anos de Servidão

quarta-feira, 22 de maio de 2024

POSTAIS SEM SELO


Uma vez por todas não escrevo para os que não sabem ler.

António Maria Lisboa

GRÃO A GRÃO...

Na 1ª página do Jornal de Notícias pode ler-se que a um trabalhador da SONAE foi-lhe tirado meio salário porque ia levar um saco de plástico sem pagar.

A decisão acabou por ser anulada pelo Supremo Tribunal de Justiça por ser desproporcionada.

 «Volume de negócios consolidado aumentou 11% no trimestre, para 2,1 mil milhões de euros, que a dona do Continente e da Worten atribui ao “forte investimento e crescimento dos negócios de retalho".»

- Dos jornais

NOTÍCIAS DO CIRCO

Um presidente da Assembleia da República enredado num mar de contradições. Como diria um dos meus netos está a escorregar na maionese.

Mas...

É importante ler o artigo que Pedro Tadeu escreve hoje no Diário de Notícias. 

O «link» do artigo fica aí mas deixo alguns tópicos:

 «Por exemplo: se podem ser proibidas no Parlamento declarações racistas ou xenófobas, porque não podem ser proibidas frases que ponham em causa a honra de um governante? Ou que acusem um país “amigo” de cometer genocídio? Ou que defenda o pagamento de indemnizações a países estrangeiros? Ou que acuse os banqueiros de explorarem a população? Ou que defendam o comunismo para Portugal?...

 Há uma deriva censória no poder Ocidental que atinge a esquerda e a direita e, por isso, a defesa da liberdade de expressão, mesmo quando beneficia um fascista, é prioritária.

E os racistas? A única solução é deixá-los falar (até para não haver ilusões de que eles não existem) mas, ao mesmo tempo, não parar de combatê-los - e aí Aguiar-Branco tem responsabilidades, pois podia, evidentemente, ter criticado André Ventura pelo que ele disse.

 Aguiar-Branco tem razão em defender a liberdade de expressão dos deputados, mas também, por não o admoestar quando ele diz desumanidades, está a ser cúmplice de André Ventura.

Deitar fora o bebé com a água do banho. É este o perigo do debate corrente acerca dos limites da liberdade de expressão e da promoção do racismo e da xenofobia nas instituições democráticas.»

OLHAR AS CAPAS


Caminhos Para uma Revolução

Jacinto Baptista

Capa: José Cândido

Colecção: Documentos de Todos os Tempos

Livraria Bertrand, Lisboa, Abril de 1975  

Assim, Salazar, dado como morto ressuscita.

Um repórter do Diário Popular falou esta manhã, na Casa de Saúde da Cruz Vermelha, onde Salazar está hospitalizado, com o Prof. Bissaia Barreto, que diariamente visita o enfermo. E começou por recolher esta declaração:

- O Senhor Presidente dormiu muito bem, passou uma noite muito calma, com um sono reparador. De manhã, o seu espírito encontrava-se desanuviado. Conhece as pessoas que entram no seu quarto, profere o nome das pessoas conhecidas, a sua memória responde mesmo à evocação de factos passados.

O repórter pergunta depois ao Prof. Bissaia Barreto se esta recuperação permitia manter esperanças de ser dada alta, em breve, a Salazar. Respondeu (fé inabalável):

- Tenho a certeza de que pode ainda levar uma vida normal e escolher o seu próprio modo de vida. Tenho a certeza. O tempo não interessa em casos destes. O que interessa é que ele regresse à vida.

Mais tarde, em entrevista à Televisão, simultaneamente recolhida pelos jornais, Bissaia Barreto declarava:

- O Senhor Presidente estará, em breve, em condições de se ocupara da sua vida pessoal e da vida que interessa à Nação.

A Censura, desconcertada, inquieta, resolve suprimir, nesta frase, as palavras e da vida que interessa à Nação, que não leremos no jornal e todavia ouviremos à noite no telejornal. E a Televisão que, pelos vistos, aposta na ressurreição de Salazar, vai mais longe, citando o Prof. Eduardo Coelho como tendo declarado que se esperava, no enfermo, uma recuperação psíquica da ordem dos oitenta a noventa por cento, motora de sessenta a setenta por cento. E Como Salazar, segundo Eduardo Coelho, tinha uma cabeça que valia por seis cabeças normais, mesmo que só recuperasse um sexto, ainda ficaria bem.

EM TODAS AS RUAS TE ENCONTRO

Em todas as ruas te encontro

em todas as ruas te perco

conheço tão bem o teu corpo

sonhei tanto a tua figura

que é de olhos fechados que eu ando -

a delimitar a tua altura

e bebo a água e sorvo o ar

que te atravessou a cintura

tanto tão perto tão real

que o meu corpo se transfigura

e toca o seu próprio elemento

num corpo que já não é seu

num rio que desapareceu

onde um braço teu me procura

 

Em todas as ruas te encontro

em todas as ruas te perco

 

Mário Cesariny de Vasconcelos 

terça-feira, 21 de maio de 2024

OLHAR AS CAPAS


Quadros da História Trágico-Marítima

Selecção, Prefácio e Notas: Rodrigues Lapa

Colecção Textos Literários

Editora Seara Nova, Lisboa, 1956

A nau «S. Tomé» partiu de Cochim para Portugal em Janeiro de 1959. Era capitão Estêvão da Veiga, e trazia para o reino pessoas de categoria: D. Paulo de Lima Pereira, que se cobrira de glória no Oriente, sua mulher, Bernardim de Carvalho, Gregório Botelho, que acompanhava sua filha D. Mariana, casada com Guterre de Monroy, que se achava em Portugal, e outros mais. A nau vinha mal calafetada, pelo que teve duas avarias. Não longe da costa do Natal, batida por tempestades, começou a deitar muita água. De nada valeu terem alijado a carga preciosa; considerado o navio irremediavelmente perdido, começaram a tratar da salvação.