Há
mais de trinta anos que não assisto a um jogo de futebol. Não conheço os
estádios novos, vejo, às vezes, um bocadinho na televisão. Mas entre os dez e
os vinte anos não falhava um jogo do Benfica. E não falhei enquanto Águas
jogou. Claro que não era apenas Águas: era Costa Pereira, Germano, Ângelo,
Simões, Eusébio, Cavém, o grande Mário Esteves Coluna que Otto Glória considerava
o melhor jogador português, outros mais artistas que jogadores, como José
Augusto, por exemplo, a todos estou grato pela beleza e a alegria que me deram,
porém nunca admirei tanto um atleta como admirei José Águas. Para quê,
portanto, ir ao futebol se ele já não se encontra no estádio? Era a elegância,
a inteligência, a integridade, o talento, e ao pensar em escrever o meu desejo
era ser o Águas da literatura. Vi Pelé, Didi, Nilton Santos, Puskas, Di
Stefano, Santamaria, tantos outros génios, no tempo em que o futebol não era
ainda uma indústria nem os jogadores funcionários competentes, comandados por
esse horror a que chamam técnicos: era pura criação, uma actividade eufórica,
uma magia cinzelada, uma nascente de prazer, uma inspiração, um entusiasmo.
Águas foi tudo isso e, muito novo, ganhou o respeito dos colegas, dos
adversários, dos jornalistas da época, que os havia de grande qualidade, Carlos
Pinhão, Carlos Miranda, Aurélio Márcio, Homero Serpa, tantos outros. Não jogava
futebol: criava futebol, respirava futebol, inventava futebol, e teria sido um
privilégio para mim conhecê-lo. Não para falar com ele, para o ouvir. A sua
beleza física invulgar distinguia-o de todos os outros, a forma de se mover em
campo era única, a autoridade sobre os companheiros natural e humilde. Os
miúdos que iam comigo à bola chamavam-lhe senhor Águas, sem sonharem que era
desse modo que Simões e Eusébio o tratavam, como tratavam Coluna. Senhor Águas,
senhor Coluna. Reconhecíamo-lo, do alto do terceiro anel, no estádio de então,
onde, de tão longe, os jogadores minúsculos, pelo modo de correr, se deslocar
no campo, passar, rematar, reconhecíamo-lo pelos seus golpes de cabeça,
inimitáveis, pelo sentido da ocupação do espaço, pela simplificada geometria do
seu futebol. Não tinha a garra de Ângelo ou Cavém, a força de Coluna, o
gigantesco talento de Eusébio, o poder do drible de Simões, a velocidade de
José Augusto: era uma espécie de rei sereno e eficaz, um aristocrata perfeito.
Até a andar os olhos ficavam presos nele, na harmonia dos gestos, no modo de
ajeitar bola, e eu, criança de dez anos ou adolescente de quinze, pensava tenho
de trabalhar mais esta página, ainda não chego aos calcanhares de José Águas.
Escrever como ele jogava, com a mesma subtileza e a mesma eficácia. Escrever
como a equipa do Benfica, umas vezes à Ângelo, outras à Germano, outras à
Coluna, e finalizar à Águas. Nunca deve ter ouvido falar em mim nem podia
adivinhar que um garoto qualquer o tomava não apenas como mestre de futebol mas
como mestre de escrita. Só, mais tarde, certos saxofonistas de jazz, Bird,
Coltrane, Webster, Coleman, Hodges, alguns mais, tiveram, sobre o meu trabalho,
influência semelhante. Mas Águas foi o meu primeiro e indisputado professor:
escreve como ele joga, meu estúpido, aprende a escrever como ele jogava. Como
morava em Benfica via-o, às vezes, no autocarro do clube e ficava, pasmado de
admiração, a fitá-lo. Isto lembra-me o meu irmão Nuno chegando a casa de dedo
no ar
-
Toquei no Eusébio, toquei no Eusébio
como
provavelmente, eu o faria, porque na infância e na adolescência o futebol era,
para além de uma aprendizagem do mundo, um prazer infinito. A cor dos
equipamentos
(o
meu amigo Artur Semedo:
-
Não sou um homem às riscas, sou homem de uma cor só)
a
entrada em campo, o hino, tudo isto me exaltava e fazia feliz. E as vitórias,
comemoradas em Benfica com bebedeiras eufóricas. Uma das minhas glórias
secretas, confesso-o agora, consiste em ter visto a fotografia do meu pai no
balneário do hóquei em patins do Benfica, de ele ter estado no Campeonato da
Europa de 1936, em Estugarda, com vinte ou vinte e um anos, e de brincarmos com
uma caixa de lata cheia de medalhas, a que o meu pai não dava importância
alguma e eu considerava inestimáveis. Há pouco, a minha mãe
-
O que faço eu a isto?
exibindo-me
uma espécie de troféu ou de placas num estojo, que alguns anos antes de morrer
a Federação de Patinagem lhe entregou, juntamente com outras antigas glórias, e
que me recordo de o meu pai, que não saía, ir receber com satisfação secreta.
Mas, claro, eu era só filho do Lobo Antunes, não era filho do Águas, e ainda
sei medir as distâncias. Portanto, o que vou eu fazer a um campo de futebol se
ele já não joga? Seguir os funcionários competentes de um negócio? Assistir ao
bailado dos técnicos? Ver a fantasia substituída pela sofreguidão, a ambição
pela avidez, o amor ao clube pela violência idiota? Claro que continuo a querer
que o Benfica ganhe. Claro que sou, como em tudo o resto, parcial, sectário,
por vezes sem bom senso algum. Mas há séculos que não sofro com as derrotas e,
sobretudo, não choro lágrimas sinceras com elas: estou-me nas tintas. Contudo
voltaria a trotar, radiante, para assistir à entrada em campo de Costa Pereira,
Mário João, Germano, Ângelo, Cavém, Cruz, José Augusto, Eusébio, Águas, Coluna
e Simões, a agradecer-lhes o facto de me terem, durante anos e anos, colorido a
existência. E talvez no fim do jogo, postado junto ao autocarro, quando os
jogadores saíssem do balneário, o senhor Águas me apertasse a mão.
Prefácio de António Lobo Antunes a José Águas,
o Meu Pai Herói de Helena Águas
Legenda: fotografia tirada do livro José
Águas, o Meu pai Herói.
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