segunda-feira, 31 de agosto de 2015

POSTAIS SEM SELO


Aqui na Bica tenho o Tejo à janela e o elevador à porta. Ter uma janela com o Tejo à frente é um gozo porque a gente, logo pela manhã, lava o olhar naquelas águas e vê passar os cacilheiros.

António Alçada Baptista em O Mistério de Lisboa, Relógio D’Água, Lisboa 1993

OLHAR AS CAPAS


Poesia

Raul de Carvalho
Portugália Editora, Lisboa, s/d

Vem, serenidade!
Vem cobrir a longa
fadiga dos homens,
este antigo desejo de nunca ser feliz
a não ser pela dupla humidade das bocas.

Vem, serenidade!
faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros
e com que os ombros subam à altura dos lábios,
faz com que os lábios cheguem à altura dos beijos.


Vem, serenidade!
Vem cobrir a longa
fadiga dos homens,
este antigo desejo de nunca ser feliz
a não ser pela dupla humanidade das bocas.

Vem serenidade!
Faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros
e com que os ombros subam à altura dos lábios
e com que os lábios cheguem à altura dos beijos.

Carrega para a cama dos desempregados t
odas as coisas verdes, todas as coisas vis
fechadas no cofre das águas:
os corais, as anémonas, os monstros sublunares,
as algas, porque um fio de prata lhes enfeita os cabelos.

Vem serenidade,
 com o país veloz e virginal das ondas,
 com o martírio leve dos amantes sem Deus,
com o cheiro sensual das pernas no cinema,
com o vinho e as uvas e o frémito das virgens,
com o macio ventre das mulheres violadas,
com os filhos que os pais amaldiçoam,
com as lanternas postas à beira dos abismos,
e os segredos e os ninhos e o feno
e as procissões sem padre, sem anjos e, contudo,
com Deus molhando os olhos
e as esperanças dos pobres.

Vem, serenidade,
com a paz e a guerra derrubar as selvagens
florestas do instinto.

Vem, e levanta palácios na sombra.
Tem a paciência de quem deixa entre os lábios
um espaço absoluto.

Vem, e desponta,
oriunda dos mares,
orquídea fresca das noites vagabundas,
serena espécie de contentamento,
surpresa, plenitude.

Vem dos prédios sem almas e sem luzes,
dos números irreais de todas as semanas,
dos caixeiros sem cor e sem família,
das flores que rebentam nas mãos dos namorados,
dos bancos que os jardins afogam no silêncio,
das jarras que os marujos trazem sempre da China,
dos aventais vermelhos com que as mulheres esperam
a chegada da força e da vertigem.

Vem, serenidade,
e põe no peito sujo dos ladrões
a cruz dos crimes sem cadeia,
põe na boca dos pobres o pão que eles precisam,
põe nos olhos dos cegos a luz que lhes pertence.

Vem nos bicos dos pés para junto dos berços,
 para junto das campas dos jovens que morreram,
para junto das artérias que servem
de campo para o trigo, de mar para os navios.

Vem, serenidade!
E do salgado bojo das tuas naus felizes
despeja a confiança,
a grande confiança.
Grande como os teus braços,
grande serenidade!

E põe teus pés na terra,
e deixa que outras vozes
se comovam contigo
 no Outono, no Inverno,
no Verão, na Primavera.

Vem, serenidade,
para que não se fale
nem de paz nem de guerra nem de Deus,
porque foi tudo junto
e guardado e levado
para a casa dos homens.

Vem, serenidade,
vem com a madrugada,
vem com os anjos de oiro que fugiram da Lua,
com as nuvens que proíbem o céu,
vem com o nevoeiro.

Vem com as meretrizes que chamam da janela,
volume dos corpos saciados na cama,
as mil aparições do amor nas esquinas,
as dívidas que os pais nos pagam em segredo,
as costas que os marinheiros levantam
quando arrastam o mar pelas ruas.

Vem serenidade,
e lembra-te de nós,
que te esperamos há séculos sempre no mesmo sítio,
um sítio aonde a morte tem todos os direitos.

Lembra-te da miséria dourada dos meus versos,
desta roupa de imagens que me cobre
o corpo silencioso,
das noites que passei perseguindo uma estrela,
do hálito, da fome, da doença, do crime,
com que dou vida e morte
a mim próprio e aos outros.

Vem serenidade,
e acaba com o vício
de plantar roseiras no duro chão dos dias,
vício de beber água
com o copo do vinho milagroso do sangue.

Vem, serenidade,
não apagues ainda
a lâmpada que forra
os cantos do meu quarto,
o papel com que embrulho meus rios de aventura
em que vai navegando o futuro.

Vem, serenidade!
E pousa, mais serena que as mãos de minha Mãe,
 mais húmida que a pele marítima da cais,
mais branca que o soluço, o silêncio, a origem,
 mais livre que uma ave em seu voo,
mais branda que a grávida brandura do papel em que escrevo,
mais humana e alegre que o sorriso das noivas,
do que a voz dos amigos, do que o sol nas searas.
Vem serenidade,
para perto de mim e para nunca.

……………………………………………..
De manhã, quando as carroças de hortaliça
chiam por dentro da lisa e sonolenta
tarefa terminada,
quando um ramo de flores matinais
é uma ofensa ao nosso limitado horizonte,
quando os astros entregam ao carteiro surpreendido
mais um postal da esperança enigmática,
quando os tacões furados pelos relógios podres,
pelas tardes por trás das grades e dos muros,
pelas convencionais visitas aos enfermos,
formam, em densos ângulos de humano desespero,
uma nuvem que aumenta a vã periferia
que rodeia a cidade,
é então que eu peço como quem pede amor:
Vem serenidade!

Com a medalha, os gestos e os teus olhos azuis,
vem, serenidade!

Com as horas maiúsculas do cio,
com os músculos inchados da preguiça,
vem, serenidade!

Vem, com o perturbante mistério dos cabelos,
o riso que não é da boca nem dos dentes
mas que se espalha, inteiro,
num corpo alucinado de bandeira.

Vem serenidade,
antes que os passos da noite vigilante
arranquem as primeiras unhas da madrugada,
antes que as ruas cheias de corações de gáz
se percam no fantástico cenário da cidade,
antes que, nos pés dormentes dos pedintes,
a cólera lhes acenda brasas nos cinco dedos,
a revolta semeie florestas de gritos
e a raiva vá partir as amarras diárias.

Vem, serenidade,
leva-me num vagon de mercadorias,
num convés de algodão e borracha e madeira,
na hélice emigrante, na tábua azul dos peixes,
na carnívora concha do sono.

Leva-me para longe
deste bíblico espaço,
desta confusão abúlica dos mitos,
deste enorme pulmão de silêncio e vergonha.
Longe das sentinelas de mármore
que exigem passaporte a quem passa.

A bordo, no porão,
conversando com velhos tripulantes descalços,
crianças criminosas fugidas à polícia,
moços contrabandistas, negociantes mouros,
emigrados políticos que vão
em busca da perdida liberdade.
Vem, serenidade
e leva-me contigo.

Com ciganos comendo amoras e limões,
e música de harmónio, e ciúme, e vinganças,
e subindo nos ares o livre e musical
facho rubro que une os seios da terra ao Sol.

Vem, serenidade!
Os comboios nos esperam.
Há famílias inteiras com o jantar na mesa,
aguardando que batam, que empurrem, que irrompam
pela porta levíssima,
e que a porta se abra e por ela se entornem
os frutos e a justiça.

Serenidade, eu rezo:
Acorda minha Mãe quando ela dorme,
quando ela tem no rosto a solidão completa
de quem passou a noite perguntando por mim,
de quem perdeu de vista o meu destino.

Ajuda-me a cumprir a missão de poeta,
a confundir, numa só e lúcida claridade,
a palavra esquecida no coração do homem.

Vem serenidade
e absolve os vencidos,
regulariza o trânsito cardíaco dos sonhos
e dá-lhes nomes novos,
novos ventos, novos portos, novos pulsos.

E recorda comigo o barulho das ondas,
as mentiras da fé, os amigos medrosos,
os assombros da Índia imaginada,
o espanto aprendiz da nossa fala,
ainda nossa, ainda bela, ainda livre
destes montes altíssimos que tapam
as veias ao Oceano.

Vem, serenidade,
e faz que não fiquemos doentes, só de ver
que a beleza não nasce dia a dia na terra.

E reúne os pedaços dos espelhos partidos,
e não cedas demais ao vislumbre de vermos
a nossa idade exacta
outra vez paralela ao percurso dos pássaros.

E dá asas ao peso
da melancolia,
e põe ordem no caos e carne nos espectros,
e ensina aos suicidas a volúpia do baile,
e enfeitiça os dois corpos quando eles se apertarem,
e não apagues nunca o fogo que os consome,
o impulso que os coloca, nus e iluminados,
no topo das montanhas, no extremo dos mastros,
na chaminé do sangue.

Serenidade, assiste
à multiplicação original do Mundo:
Um manto terníssimo de espuma,
um ninho de corais, de limos, de cabelos,
um universo de algas despidas e retrácteis,
um polvo de ternura deliciosa e fresca.

Vem, e compartilha
das mais simples paixões,
do jogo que jogamos sem parceiro,
dos humilhantes nós que a garganta irradia,
da suspeita violenta, do inesperado abrigo.

Vem, com teu frio de esquecimento,
com a tua alucinante e alucinada mão,
e põe, no religioso ofício do poema,
a alegria, a fé, os milagres, a luz!

Vem, e defende-me
da traição dos encontros,
do engano na presença de Aquele
cuja palavra é silêncio,
cujo corpo é de ar,
cujo amor é demais absoluto e eterno
para ser meu, que o amo.

Para sempre irreal,
para sempre obscena,
para sempre inocente

Serenidade, és minha.

domingo, 30 de agosto de 2015

INDIGNAÇÃO


O Fernando Assis Pacheco dizia que a indignação é um signo diário.

O direito que temos à indignação.

Também contra nós próprios.

É o que me traz aqui.

Estou furiosamente indignado comigo.

Eu conto.

A páginas 32 das Crónias: Imagens Proféticas e Outras do João Bénard da Costa, leio:

Dez anos antes, nunca deitei o meu filho mais velho sem que ele ouvisse, antes de ir para o escuro, o Canon vocal Bona Nox K. 561 de 1788. Tão magicamente simples (ou tão magicamente completo) provocava, nele como em mim, essa mesma serenidade que o tão esquecido Raul de Carvalho invocou num dos mais belos poemas da língua portuguesa.

Vem Serenidade é um lindíssimo poema que Mário Viegas diz, como só Mário Viegas podia dizer.

Ninguém mais.

Sim, dos mais belos da literatura portuguesa.

O que me indigna, é que Raul de Carvalho nas etiquetas deste blogue, apenas tem uns textos avulsos e nem um Olhar as Capas.

Eu sei que é vasta a lista de livros e autores a aguardar vez, mas Raul de Carvalho nestes já cinco anos e alguns meses de Cais, ainda não ter aparecido nas etiquetas das capas, é lamentável.

Não me perdoo.

Como se já não bastasse todo o silêncio, em vida e depois da morte, com que o Raul de Carvalho (sobre)viveu, teria que acontecer o meu.

E logo com um poeta de que tanto gosto.

Estas coisas são possíveis mas são tristes, lamentáveis.

No momento, em que vou rectificar a falha grave, fica sempre um amargo que me deixa para lá de não sei bem o quê.

Vem Serenidade é um longo poema de uma beleza extraordinária, 12, 53 minutos no dizer de Mário Viegas, que podem encontrar no You Tube e que não poderão perder.

Para atenuar – não é possível!, digo-vos - o esquecimento em que envolvi Raul de Carvalho, deixo-vos com o Bona Nox de Mozart, de que fala o João Bénard da Costa.

Boa noite.

Legenda: pintura de Leonid Afrenov

POSTAIS SEM SELO


Tudo piorou quando deixou o tabaco e passou a fazer acupunctura: «Não se podia dizer nada.» Ana corrobora: «Era mais alegre quando fumava, quando deixou de fumar ficou mais sisudo e irritável, porque não sabia às vezes o que fazer.»

Nuno Costa Santos em Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco.

QUOTIDIANOS


Não nos espantemos, de resto. Que isto se desse com Guida, não tinha nada de especial. Especial porquê? O falar alto, só para si, é um excitante intelectual, um devaneio dos solitários, sonho ou vingança. Tecem diálogos ao espelho das burguesinhas das vilas, fala o cego para o surdo sobre o mundo que os rodeia. Canta o galo capado, poucos o entendem. E poetas há, nas Caixas de Previdência, que vagueiam alta noite pelas ruas da Baixa, esmiuçando conversas de sua imaginação.
É natural. Vivemos numa época em que cada qual fala para si mesmo na companhia de muitos outros.

José Cardoso Pires em O Anjo Ancorado

OLHAR AS CAPAS


Memória Possível
6º Volume dos Dias Comuns

José Gomes Ferreira
Capa: Rui Garrido
Publicações Dom Quixote. Lisboa, Janeiro de 2013

Novo encontro com Judite de Carvalho no dentista.
- Não traz o cabelo penteado da mesma maneira!... – observou o dentista.
- Pois não. Como não gosto da minha cara e não posso mudá-la, mudo de penteado.
Procurei uma frase amável para lhe dizer, mas não a encontrei – malogro que ela infelizmente percebeu.
E no entanto bastaria dizer-lhe que, por mais que mudasse de rosto, nunca arranjaria outro mais inteligente.

PORQUE HOJE É DOMINGO


Alguém poderia pensar que o Oh Carol poderia não estar na juke box da Esplanada do Marqyes na Trafaria?
Claro que não!
Bom domingo!

sábado, 29 de agosto de 2015

POSTAIS SEM SELO


 Restam-lhe três cêntimos para a boa ou má sorte. Surge um camião de mudanças, brilhante e amarelo.
- Dá-me boleia? – pergunta ele ao homem ruivo que está sentado ao volante.
- Para onde vai?
- Não sei… para muito longe.

 John dos Passos em Manhattan Transfer

Legenda: cena do filme A Última Sessão de Peter Bogdanovitch

QUOTIDIANOS


 No Jazzé e Outras Músicas, José Duarte recua aos anos 50 para os 60, recorda a velha Barata, livros que só ali encontrávamos – a PIDE também - e termina:

Lia-se mais, lia-se melhor.

A LISBOA DE GEDEÃO


Do alto do elevador de Santa Justa, na plataforma onde se embarca para a descida, descobrem-se algumas vistas lindas da cidade: O Tejo, com o Arco da Rua Augusta, de costas.

Fotografia e legenda de António Gedeão em Memória de Lisboa

OLHAR AS CAPAS


Crónicas: Imagens Proféticas e Outras
3º Volume

João Bénard da Costa
Edição: Lúcia Guedes Vaz
Sistema Solar, CRL (Documenta), Lisboa, Outubro de 2014

Cada encontro é um reencontro. Não sei de outra explicação plausível para os encontros que, ao longo da vida, cada um de nós teve, tem ou terá. «Se não me conhecesses, não me procuravas». É verdade que muitos procuram sem achar. Mas nunca ninguém achou sem procurara, mesmo que não soubesse o que procurava ou quem procurava. Todos nascemos com um conhecimento que esquecemos nos anos ditos de aprendizagem. O que a vida nos vai dando, nos chamados encontros, é a memória desse esquecimento. Memória que reconhecemos como tal, esquecimento que não recordamos como tal, porque um dos caminhos do acesso nos está vedado, ou nós o vedámos. Mas é a memória que permite o encontro, que, sem ela, nunca se daria. Julgamos achar de novo, mas só achamos o que encontrámos. Quantas vezes nos dizemos: «isto não pode estar a acontecer». Mas o que não pode estar a acontecer é o que acontece, e só acontece porque já aconteceu. Sob outras formas, noutros mundos ou noutras idades? É bem possível, é mesmo a única possibilidade, só que o possível e o impossível ultrapassam as categorias de tempo e espaço a que nos referimos. Sem o sabermos vemos o mesmo filme, com o fim no lugar e o princípio no lugar do fim. Não há solução mais falsa do que a da continuidade. Mas, se não houvesse continuidade, não havia solução.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

POSTAIS SEM SELO


Porque o vim a conhecer mais perto, mais de dentro, apwecebi-me do entre-nós e saquei daí tranquilidades. Amor à vida é saber ver.

Nuno Bragança em A Noite e o Riso

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

OS IDOS DE AGOSTO DE 1975

Recorte do Diário de Lisboa de 28 de Agosto de 1975.

TÃO TRANQUILO COMO UMA CRIANÇA ANTIGA


Despedimo-nos e saí do quarto dele. Mas algo me fez voltar trás. Ele tinha caído num sono leve. Fiquei ali a olhá-lo. Tão tranquilo, como uma criança antiga. De súbito ele abriu os olhos e sorriu-me. «Já voltaste?» E depois tornou a dormir.
Por isso a minha última imagem foi como a primeira. Um mancebo adormecido envolto em luz, que abriu os olhos com um sorriso de reconhecimento para alguém que jamais fora uma estranha.

Patti Smith em Apenas Miúdos

Legenda; Patti Smith e Robert Mapplethorpe

OLHAR AS CAPAS


Manhattan Transfer

John dos Passos
Introdução de Salvato Teles de Menezes
Tradução: Alfredo Amorim
Capa: José Teófilo Duarte
C´rculo de Leitores, Lisboa, Setembro de 1989

- Homem, como é que você não arranja trabalho fixo? – perguntou ela quando Bud, sem fôlego, voltava com o cesto vazio.
- Penso que é porque ainda não me sei desembaraçar na cidade. Nasci e fui criado numa quinta.
- E porque é que quis vir para esta horrível cidade?
- Já não podia suportar a quinta.
- É terrível o que vai acontecer a este país se tosos os moços robustos deixam aas quintas e vêm para as cidades.
- Pensei que podia trabalhar como carregador, minha senhora, mas estão a despedir gente no cais. Talvez me pudesse engajar como marinheiro, mas ninguém quer aprendizes… Há dois dias que não como.
- Que horror!... Mas, pobre homem, porque não foi a uma missão ou qualquer coisa no género

ENTUSIÁSTICA A MAIS NÃO PODER SER


Tal como ficou prometido em AH!...AS ABÓBORAS!...

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

POSTAIS SEM SELO


Agora hesito entre gaivota e onda com receio de haver o paraíso.

Natália Correia em As Maçãs de Orestes

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

OS IDOS DE AGOSTO DE 1975


27 de Agosto de 1975

A ONDA DE VIOLÊNCIA continua a ser uma constante do Verão português.
Leiria é cenário de noites de terror.
Centenas de pessoas voltaram a assaltar o Centro de Trabalho do PCP, mas o conflito estendeu-se a outros pontos da cidade, registando-se a destruição de automóveis e estabelecimentos comerciais.
Forças militares, elementos da GNR e da PSP tiveram sérias dificuldades em estabelecer a ordem, que se afigura precária.
Há a lamentar uma morte e dezenas de feridos, alguns em estado grave.

O COPCON ocupou as instalações da 5ª Divisão com a intenção de cancelar as suas actividades.
As operações foram levadas a cabo por uma forças dos Comandos capitaneadas   por Jaime Neves, supervisionadas por Otelo e com total desconhecimento do Presidente Costa Gomes.
Trata-se da primeira acção ofensiva do MFA contra uma das suas facções.
José Saramago escreverá no Diário de Notícias:
Não há revolução onde não houver autoridade revolucionária. Se O COPCON assalta, invade e ocupa a a 5ª Divisão, mas não protege minimamente instalações de partidos que querem o socialismo – onde está a revolução e a autoridade?


CARLOS FABIÃO comunica ao Grupo dos Nove que renuncia à formação do VI Governo Provisório.
Diversas reuniões realizadas em casa de José Gomes Mota, conforme relato no seu livro A Resistência, levam à indicação do Almirante Pinheiro de Azevedo para formação do novo governo.

O GOVERNADOR Lemos Pires abandonou Dili e dirigiu-se com uma companhia reforçada com paraquedistas, elementos da Marinha, num total de 104 homens, para a ilha de Ataúro que fica a 20 quilómetros de distância.
Na véspera, o encarregado de Negócios das Molucas, de visita a Portugal, disse que há fortes razões para crer que a Indonésia prepara, para muito breve, uma intervenção em Timor.
A UDT e a Fretilin mantém, entre si,  acções de combatede combate, num clima de guerra civil.

Fontes:
- Acervo pessoal;
Os Dias Loucos do PREC de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira.

Legenda: recortes do Diário de Lisboa e de A Capital

NADINHA!


Conta-se que a velha criada de Alexandre Herculano, quando um jornalista curioso lhe perguntou o que fazia o mestre desterrado em Vale de lobo, respondeu: «Não faz nada. Nadinha, Passa os dias a ler e a escrever.» Este preconceito popular de que escrever não é trabalhar encontra-se muito disseminado e chega a contaminar atitudes supostamente mais sofisticadas.

Mário de Carvalho em Quem Disser o Contrário É Porque Tem Razão.

OLHAR AS CAPAS


351 Tisanas

Ana Hatherly
Capa: Ana Hatherly
Quimera Editores, Lisboa, Verão de 1997

Era uma vez uma chave que vivia no bolso de um homem. Durante muito tempo desempenhou com honestidade o seu trabalho de abrir portas. Até que um dia descobriu que todo o seu trabalho tinha consistido sempre em abrir portas que já estavam abertas. Quando descobriu isso lançou-se corajosamente para fora do bolso. Caiu no chão. Ficou ali. Passa uma criança vê a chave e diz que coisa tão engraçada para fazer um carrinho.

PORQUE BUSCAMOS NO QUOTIDIANO


Porque buscamos no quotidiano uma estrada
onde se repita o amor e a casa de algum Verão.
Porque a memória tem sinais de trânsito e
às vezes falamos muito e alto quando está
vermelho para recordar, e chamamos os amigos
e de repente fica amarelo sem sabermos como,
e no fim do dia, quando nos deitamos, cai o
verde e tudo avança e as recordações são em
vez do sono, são em vez da vida, são em vez do
verbo. Porque também nós temos montanhas
e rios assinalados e também em nós há
itinerários principais e secundários e ruas que
vão da cabeça aos pés quando a mão desejada
 nos percorre como carro de brincar. Porque
também nós exigimos um novo aeroporto
onde pousar a cabeça, ou pelo menos algumas
 obras no aeroporto onde desajeitadamente
procuramos aterrar. Porque mesmo com
quatro ou vinte auto-estradas continuamos a ter
 o caminho para o tanque onde mergulhávamos
na infância. Porque andamos todos à procura
uns dos outros dentro e fora de quem somos e
parece que nos desencontramos, que paramos
na estação de serviço errada, a 10 km, sempre a
olharmos para o relógio, a 10 km, na direcção uns
dos outros, a 10 km mas na estação de serviço
errada. Porque o limite do corpo é o desenho do
mapa e às vezes apetece rasgar, omitir, estender
 a fronteira, mas para isso há a guerra, porque
imediatamente fora desse limite há outros e
outros países invadidos por nós. Porque no
fundo desejamos apenas ser conquistados.
Porque os países conquistados conseguem
mexer no mapa e não ter culpa. Porque os
países conquistados se reconstroem depois da
guerra e antes do recomeço do amor.

Somos um mapa circular, humano e excessivo.

Filipa Leal, poema colocado por Nicolau Santos na sua coluna no Expresso.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

POSTAIS SEM SELO


- Quanto mais baixo se cai, mas as coisas se tornam claras. Chega-se ao fundo. Quando se perde, encontramo-nos a nós próprios.

Cesare Pavese em O Diabo Sobre as Colinas

Legenda: pintura de Sergio Guerra

É PERMITIDO AFIXAR ANÚNCIOS


Um velho anúncio da Cerveja Sagres do ano de 1967.

OLHAR AS CAPAS


O Banqueiro Anarquista

Fernando Pessoa
Capa: José Manuel Figueiredo
Colecção Mínima nº 1
Ulmeiro, Lisboa, Abril de 1994

Pois foi este o pro­cesso que eu segui. Meti ombros à empresa de sub­ju­gar a fic­ção dinheiro, enri­que­cendo. Con­se­gui. Levou um certo tempo, por­que a luta foi grande, mas con­se­gui. Escuso de lhe con­tar o que foi e o que tem sido a minha vida comer­cial e ban­cá­ria. Podia ser inte­res­sante, em cer­tos pon­tos sobre­tudo, mas já não per­tence ao assunto. Tra­ba­lhei, lutei, ganhei dinheiro; tra­ba­lhei mais, lutei mais, ganhei mais dinheiro; ganhei muito dinheiro por fim. Não olhei o pro­cesso — confesso-lhe, meu amigo, que não olhei o pro­cesso; empre­guei tudo quanto há — o açam­bar­ca­mento, o sofisma finan­ceiro, a pró­pria con­cor­rên­cia des­leal. O quê?! Eu com­ba­tia as fic­ções soci­ais, imo­rais e anti­na­tu­rais por exce­lên­cia, e havia de olhar a pro­ces­sos?! Eu tra­ba­lhava pela liber­dade, e havia de olhar as armas com que com­ba­tia a tira­nia?! O anar­quista estú­pido, que atira bom­bas e dá tiros, bem sabe que mata, e bem sabe que as suas dou­tri­nas não incluem a pena de morte. Ataca uma imo­ra­li­dade com um crime, por­que acha que essa imo­ra­li­dade pede um crime para se des­truir. Ele é estú­pido quanto ao pro­cesso, por­que, como já lhe mos­trei, esse pro­cesso é errado e con­tra­pro­du­cente como pro­cesso anar­quista; agora quanto à moral do pro­cesso ele é inte­li­gente. Ora o meu pro­cesso estava certo, e eu servia-me legi­ti­ma­mente, como anar­quista, de todos os meios para enri­que­cer. Hoje rea­li­zei o meu limi­tado sonho de anar­quista prá­tico e lúcido. Sou livre. Faço o que quero, den­tro, é claro, do que é pos­sí­vel fazer. O meu lema de anar­quista era a liber­dade; pois bem, tenho a liber­dade, a liber­dade que, por enquanto, na nossa soci­e­dade imper­feita, é pos­sí­vel ter. Quis com­ba­ter as for­ças soci­ais; combati-as, e, o que é mais, venci-as.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

POSTAIS SEM SELO


Nunca senti necessidade de remoer momentos tristes. Acontecem. Passam. Eu ando para a frente. Construo. Nunca fui de me sentar a suspirar por tempos idos. Suspirar por quê? Pela inocência perdida? Por tempos mais simples? Eu não perco tempo a pensar no destino ou no fado – fado, em português, quer dizer destino. Quem diz que acredita no destino quer é justificar os seus próprios fracassos. Não lhe parece? Ou serei um ateu?

Robert Wilson em A Companhia de Estranhos

OS IDOS DE AGOSTO DE 1975


25 de Agosto de 1975

EM SEGUNDA EDIÇÃO, O SÉCULO, publica o comunicado que anuncia a constituição da FUR – FRENTE DE UNIDADE REVOLUCIONÁRIA,
Mesmo os que viveram aqueles dias quentes do Verão de 1975 têm sérias dificuldades em os descrever.
Apenas para se fazer uma pequena ideia do que então ia acontecendo, atente-se neste comunicado que os trabalhadores de O Século publicaram na 1ª página junto à notícia da constituição da FUR;


APARECEU NAS BANCAS o 1º número de A Luta, tendo como director Raul Rego e uma redacção composta pelos jornalistas que saíram de A República.
Recordo as palavras de César Oliveira no seu livro Os Anos Decisivos:
O PS «sempre se deu mal» com a imprensa após o 25 de Abril. A Luta falhou, o Portugal Hoje fracassou e todos os homens que o PS nomeou, quando no governo, para cargos importantes nos órgãos de comunicação social, desde Mário Mesquita a José Eduardo Moniz, ou saíram do PS ou passaram-se para o PSD.

NOTÍCIAS CHEGADAS DE TIMOR dão conta de centenas de mortos nas ruas de Dili.

PELO QUE CORRE nos gabinetes dos ministérios, pelas redacções dos jornais, continuam as discussões entre elementos do Grupo do 9 e do Copcon com vista à formação do VI Governo e em que o General Fabião é apontado como primeiro-ministro. Mas não tem sido fácil o diálogo.

ONTEM, EM LEIRIA, largos milhares de pessoas participaram numa manifestação exigindo Informação Livre, Rádio Renascença para a Igreja, Não à Violência.
O Bispo de Leiria D. Alberto Cosme do Amaral proferiu um discurso que lembrava as recentes reivindicações do Episcopado.
Após a condenação da violência, centenas de manifestantes assaltaram e destruíram todo o recheio da sede do MDP/CDE.
De seguida dirigiram-se para as instalações do Centro de Trabalho do PCP e tentaram o assalto.
Uma força militar do RAL impediu o saque mas os tumultos sucederam-se  pela noite dentro  e dos graves incidentes resultaram dezenas de feridos.

VERGÍLIO FERREIRA no seu Conta-Corrente:
Dói-me a cabeça. Há grandes rumores nela.

Fontes:
- Acervo pessoal;
Os Dias Loucos do PREC de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira.

NOTÍCIAS DO CIRCO


A CDU coloca Heloísa Apolónia a debater com Paulo Portas.

E assim de repente, eu que já tinha decidido não a assistir a nenhum dos debates televisivos para as eleições de Outubro, vou mandar a decisão própria dar uma volta e, no próximo dia 10 de Setembro, estarei de cadeirinha a olhar a pantalha.

OLHAR AS CAPAS


O Irreal Quotidiano

José Gomes Ferreira
Capa: João da Câmara Leme
Portugália Editora, Lisboa, Junho de 1971


Aqui há anos concebi um Tratado e Defensão da Verdadeira Arte de Falar Sòzinho onde tencionava apresentar vários truques e manhas para os faladores solitários se defenderem do ridículo e da vergonha da mofa pública quando sentissem a necessidade de tirar cá para fora, dos respectivos alçapões, os fantasmas das conversas.

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


Não gostaria que Agosto findasse sem voltar a falar de Marilyn.

Todos os tempos são bons para se falar da Diva mas há aquele Agosto de 1962, aquele fatídico dia 5 em que se deixou morrer ou, simplesmente, a mataram.

Ainda acalento a esperança de que a verdadeira história se saberá ainda comigo por cá. Não me interessa assim muito, mera curiosidade porque, por óbvio, sei que a mataram.

Páginas primeiras de Marilyn, Últimas Sessões, Michel Schneider trata de nos dizer que fala de uma mulher cheia de vida, de humor, de desejos, tudo menos uma depressiva com tendências suicidas.

Agosto que é o tempo de uma noite de calor tórrido em Nova Iorque.

 Billy Wilder põe Marilyn a representar uma das cenas mais famosas do cinema.

Marilyn pergunta por uma brisa que a refresque e a andar passa pela grade de uma saída de ar do Metropolitano e o sopro que de lá sai levanta-lhe aquele vestido branco.

Uma lufada de ar fresco pode muito bem incendiar o mundo, tal como escreveu Manuel S. Fonseca.

O filme chama-se The Seven Year Itch, que em português se chamou O Pecado Mora ao Lado.

Folheio o livro de Schneider e faço paragem quando ele  vai buscar esse filme para colocar Billy Wilder a falar dos costumados atrasos de Marilyn:

Eu não tinha problemas com a Monroe. Marilyn tinha problemas com a Monroe. Havia nela qualquer coisa que a mordia, que a roía, que a devorava. Era um ser desacertado, à procura de uma parte perdida de si mesma. Como nessa cena de Some Like It Hot, em que, mal acordada e ébria, tinha de abrir todas as gavetas de uma cómoda e dizer: «Mas onde está esta garrafa de whisky?» Tínhamos colado uma etiqueta em cada uma das gavetas, para lhe lembrar a réplica. Não serviu de nada, e à sexagésima terceira tentativa em dois dias para filmar a cena, chamei-a à parte e perguntei: «O que é que não está a corre bem? Não te preocupes vamos conseguir.» Ela respondeu: «Preocupar-me com o quê?» Fizemos oitenta tentativas. Mas, contas feitas, valia a pena. É uma grande actriz. Mais vale Marilyn atrasada do que todas as outras actrizes dessa época. Se eu quisesse alguém que chegasse todos os dias a horas sabendo as réplicas de cor, contratava uma tia velha que tenho em Viena. Levanta-se sempre às cinco da manhã e nunca tem falhas de memória. Mas quem é que quereria vê-la no écran.

George George Cukor, que a dirigiu em Vamo-nos Amar e que não simpatizada nada com Marilyn, chegou a dizer que Marilyn era bastante dotada, que se subestimava., capaz de fazer coisas dificílimas, mas que não tinha confiança alguma em si.

Marilyn dizia-se uma dançarina que não sabe dançar”

Para os atrasos de Marilyn volto ao livro de Scheider:

Desde o início das filmagens, Geoge Cukor contabilizou trinta e nove horas perdidas apara a produção. Chego sempre atrasada. As pessoas imaginam que é por arrogância. É exactamente o contrário. Conheço montes de pessoas que são perfeitamente capazes de chegar a horas mas para não fazerem nada, só ficarem sentadas a contar a vida ou outro monte de burrices, É isso que espera de mim.

Razão tinha Billy Wilder quando lembrava a velha tia que tinha em Viena…  

QUOTIDIANOS


Depois de um domingo como o de ontem, passei parte do dia de hoje de volta do Livro de Colorir Anti-Stress que a minha filha Sara me deu pelo Natal.

Que belo remédio!

APANHADOS DO FACEBOOK


De Cesino Alves.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

POSTAIS SEM SELO



É sempre fácil caminhar em cima das águas, mas é impossível fazê-lo milagrosamente. Tornou-se um número de circo – aquele equilíbrio no arame que mata o apetite da vertigem e nebulosa delinquência de uma emotividade suburbana. A última revelação é esta de sermos os produtores inexoráveis e os inevitáveis produtos de uma ironia cuja única dignidade é descender do tormento, um tormento sempre equivocado na sua manifestação sensível. Por isso cada vez me devoto às imobilidades, aos silêncios, ao sono.

Herberto Helder em Photomaton & Vox

OLHAR AS CAPAS


Antologia Poética

Jacque Brel
Textos sobre Jacques Brel, entrevistas com Jacques Brel e Poemas
Tradução e Introdução de Eduardo Maia
Colecção Lagarto nº 11
Assírio & Alvim, Lisboa, Setembro de 1985

J C - Parece-me que não gosta muito daquela sua canção intitulada «Quand maman reviendra», visto que nunca a canta em público. Porquê?
JB - É verdade qie não gosto muito dessa canção. Aliás, ela já passou por diversas vicissitudes. Comecei por escrevê-la com uma música diferente de que você conhece, mas tive de fazer outra. Mas, sobretudo, aconteceu que não consegui fazer o que queria realizar inicialmente. A história devia desenrolar-se na periferia de uma grande cidade dos Estados Unidos. E eu quis armar em proletário, que o não sou. Quis-me pôr na pele de um tipo de vinte anos, e já os não tenho. Cada vez que faço batota comigo mesmo sai asneira, o que é bem feito. Na altura penso que estou a ser sincero, estou convencido que tenho mesmo vinte anos, etc. Vejo-me sentado no passeio numa zona operária, e fico todo convencido, todo babado. E juro que tenho realmente a sensação de estar a ser honesto. No entanto, quando acabo o trabalho, dou conta, quando já é tarde, que o não estava a ser. É assim que se estraga uma canção.

(Da entrevista deJean Clouzet)

QUOTIDIANOS


- Conta, Maynard. Em que pensas?
Sorri, de olhos fechados.
- Em Ravel.
Ela mexeu a cabeça.
- És doido, Maynard. Diz-me.
- Em Ravel, menina. Estou a reduzir tudo o que penso à expressão mais simples. Ravel tem razão. Fez o «Bolero» com uma repetição incessante de notas, só os andamentos é que mudam.
- E depois?
- Depois, é como a vida. – Disse isto e abri os olhos- - As notas são sempre as mesmas. Só os andamentos é que mudam. E o resto, é um problema de orquestração.
Abraçámo-nos.
- És um tigre, Maynard. Um tigre terno.
Gostei de ouvir. Narciso de merda.

Dennis McShade em Requiem por D. Quixote.

domingo, 23 de agosto de 2015

POSTAIS SEM SELO


No início doas anos 90, apenas algumas pessoas possuíam telemóveis. Mas mesmo esses eram já suficientes para transformar uma viagem de comboio num tormento.

Umberto Eco

OLHARES


Lisboa vista de Alcochete.

OLHAR AS CAPAS


Obscuro Domínio

Eugénio de Andrade
Capa de Armando Alves sob um desenho de José Rodrigues
Fotografias de Armando Alves
Editorial Inova, Porto, Novembro de 1971

Arte de Navegar

Vê como o verão
sùbitamente
se faz água no teu peito,

e a noite se faz barco,

e minha mão marinheiro

DITOS & REDITOS



Não há mal que não tenha o seu avesso.

O orgulho e a inveja só conduzem à angústia.

Não se fala do que não se sabe.

Perder tempo é a melhor prova de se estar vivo.

Acabar é sempre uma desilusão.

O mundo está cheio de cegos vivos.

Ele há vidas mais baratas. Não são é tão boas.

A medicina é uma arte do comércio.

PORQUE HOJE É DOMINGO


No início da década de 60, Kanimambo de João Maria Tudela foi um grande sucesso e não poderia deixar de marcar presença na Juke Box na esplanada do Marques na Trafaria.
Bom domingo!

sábado, 22 de agosto de 2015

POSTAIS SEM SELO


Chovia como eu quero, leve e batida pelo vento, tipo «spray». Os carros zangados uns com os outros, apertavam-se mutuamente, o que é uma mentira, eram os condutores armados de volante nas mãos, embora cautelosos, porque a
Água é perigosa. Quando chover não guie! Com os vidros embaciados como convém, com os vidros fechados para preservar o silêncio, com a rádio a dar-me Billie Hoilday integrada na programação normal. Só faltava sair o fumo do chão como sai em Manhattan, no Outono, estação primeira.

José Duarte em Jazzé e Outras Músicas

OLHARES


Um olhar sobre Lisboa desde o Miradouro do Arco da Rua Augusta.

E DE NOVO, LISBOA...


E de novo, Lisboa, te remancho,
numa deriva de quem tudo olha
de viés: esvaído, o boi no gancho,
ou o outro vermelho que te molha.

Sangue na serradura ou na calçada,
que mais faz se é de homem ou de boi?
O sangue é sempre uma papoila errada,
cerceado do coração que foi.

Groselha, na esplanada, bebe a velha,
e um cartaz, da parede, nos convida
a dar o sangue. Franzo a sobrancelha:
dizem que o sangue é vida; mas que vida?

Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui,
na terra onde nasceste e eu nasci? 


Alexandre O' Neill em De Ombro na Ombreira

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

POSTAIS SEM SELO


Há muitas maneiras de fazer as coisas mal e, em geral, só uma maneira de as fazer bem. Dois e dois são mesmo quatro; não há volta a dar. Em Portugal, poré, parece vigorara uma regra: tudo o que puder ser mal feito, é. Se se puder aldrabar o próximo, meter dinheiro ao bolso e criar barulho (político), ainda melhor. Depois corrige-se a asneira cometendo novo disparate. E assim sucessivamente até se construir o mostrengo ou espantalho. É de fugir.

Jorge Calado no Expresso


Legenda: ilustração Lima Junior

CANÇÕES DE ENTARDECERES


Vergílio Ferreira no seu Conta-Corrente
Entardece devagar. Uma melancolia vaga pois lenta nas coisas, procura incerta a razão de ser triste. Todo o presente e futuro se esfumam em passado. A sagração do silêncio.
O sol hoje pôs-se às 20,35 horas.

A canção escolhida para hoje foi Nature Boy.
As vozes de George Benson, Nat King Cole e Ney Matogrosso numa espantosa interpretação.






O QU'É VAI NO PIOLHO?


CINEMA RIVOLI

Por dez tostões subíamos à galeria.
Do alto víamos as divas, aprendíamos
a beijar - mal, é evidente: o código
Heyes lá estava para nos impedir
de estremecer a fundo -. A Garbo punha
nas nossas namoradas olhares lânguidos.
As divas eram todas grandes damas,
nunca se despiam sob o olho guloso e,
mesmo na banheira,
apareciam sob uma espessa cortina
de espuma: a inveja dos que em casa
se lavavam com sabão azul. E havia
(coisa fina!) os que se masturbavam
com o olho nas pernas da Marlene. Lia-se
“O Cinéfilo”, a vida íntima das estrelas
ganhavam-se ideias para os bilhetinhos
que se passavam para as mãos das miúdas.
As aulas começavam à segunda-feira
com a briga dos adeptos
(ou já seriam fãs?) das duas “rivais”.
Depois a professora entrava, encavalitava
os óculos de aro metálico e dizia: Meninos,
hoje vamos dar... Ainda estávamos longe
da época Ava Gardner, da mítica Marilyn,
das pernas marlénicas da Cyd Charisse...
Longe das audácias dos anos noventa: mamas e
rabos, fuck explícito, palavrões a granel.
Cada geração inventa o seu reco-reco...

Egito Gonçalves

Legenda: fotografia tirada de Cinemas do Paraíso