O computador onde nasce o Cais do Olhar, vai entrar em serviços de manutenção.
Prometeram-nos ser breves.
O computador onde nasce o Cais do Olhar, vai entrar em serviços de manutenção.
Prometeram-nos ser breves.
Que se há-de fazer? Há a guerra da dignidade, há a paz dos sepulcros. Eu estou com a primeira.
José Saramago em Cadernos de Lanzarote, Volume V
Legenda: fotografia Shorpy
Domingo a arrumar livros.
Os livros arrumam-se?
O Mário Castrim tinha
os livros espalhados pela casa, quando precisava de um, assobiava...
O problema de arrumar
livros é que passo mais tempo a reler passagens do que a arrumá-los.
Na página 25 de O Capitão Nemo e Eu de Álvaro Guerra, li:
«O gin-tónico faz mal ao coração».
Talvez… e pode ser
que, olhando os obstáculos colocados no caminho, agora eu veja mais claramente
que isso pode acontecer…
Em muitos dos locais em que tenho trabalhado ocorre-me com frequência uma história de Bertold Brecht: «Um colaborador do senhor K. foi acusado de tomar uma atitude hostil a seu respeito. “sim, mas fê-lo apenas nas minhas costas”, disse o senhor K. a defendê-lo.»
Eduardo Prado
Coelho em Tudo o Que Não Escrevi, Volume II
Eu bem queria não te dizer apenas
que, na cidade, são sete horas precisas
e os eléctricos conduzem gente
circunspecta e cansada.
Eu gostaria de dizer-te
que coisas sublimes tinham acontecido
ou, pelo menos, falar-te
de pequenos mas raros sucessos.
Se tudo fosse tão simples e sereno
como a descuidada juventude dos pássaros,
a todos os momentos eu poderia
enviar palavras naturais e frescas
ao teu coração aberto e vasto.
Difícil, então, só seria o silêncio
e dizendo teu nome estabeleceria
o rompimento absoluto com as estreitas,
agrestes e de sempre palavras sem futuro.
Poderia depois dizer-te coisas brandas
na universal linguagem
que tornasse concordes pássaros e estrelas
com a circulação ritmada do teu sangue.
Poderia falar-te de coisas que não estas,
de outra gente, não esta que ora segue
sonolenta e resignada pelas ruas.
Esta gente que não tem um sonho a embalar,
mas filhos, muitos filhos,
esta gente sem gritos nem revoltas,
mas sorrisos humildes e postiços,
esta pobre gente para quem são sete horas
irremediavelmente.
Ah! Maria Virgínia, pudesse eu
dizer-te francamente: «Não há perigo,
nada importam as horas,
vamos calmos e felizes pela cidade,
e o tempo não marca porque tudo é perfeito.»
Sim, eu queria dizer-te só palavras
harmónicas e novas.
Sim, eu queria que o tempo fosse
o mesmo dos insectos e dos peixes,
dos seres simples mas donos dos seus dias.
Exactamente o propício tempo
para te enviar as mais belas notícias
que tu guardarias juntamente
com a mais pura alegria.
Ah! pudesse eu dizer-te
o que dirão os homens
livres para sempre destas amargas horas
António Rebordão Navarro em Poesia Portuguesa do Pós-Guerra
Por vezes
chateio-me com o que fazem, com o que dizem, cometem erros, é certo, mas é a
minha gente.
O raio dos
livros que li, levaram-me sempre a olhar para o essencial, e colocar de lado o acessório.
Há uma frase que
Mário Dionísio cita na sua Autobiografia
e nunca esqueci:
«Os erros dos nossos amigos nunca nos hão-de pôr
do lado dos nossos inimigos.»
Por uma vez, não segui a indicação do Partido.
Aconteceu nas
últimas presidenciais.
Para que Marcelo
não se sentasse em Belém, votei Sampaio da Nóvoa.
Amanhã, no
boletim de voto, colocarei a cruzinha no quadrado onde está o João Ferreira.
Por vezes, chateio-me
com eles, mas é a minha gente.
Mais ou menos há
um ano, quando a Organização Mundial de Saúde revelou ao mundo, a existência de
um vírus, a que chamou Covid-19, datou o seu aparecimento no dia 27 de Dezembro,
na China, mais propriamente na cidade de Wuhan.
Lembra-se de, idiotamente,
ter dito que aquilo era longe, muito longe, e que os chineses resolveriam o
problema.
A 30 de Janeiro, a Organização Mundial de Saúde lançou
um desesperado alerta sobre os riscos do coronavírus, e havia apenas 82 casos,
e nenhuma morte, fora da China.
No dia 23 de
Fevereiro leu no Público que se
registaram, devido ao vírus, duas mortes e seis dezenas de infectados.
Porra!, mas a Itália não é tão longe como a China!...
A 11 de Março a
Organização Mundial de Saúde declara o mundo em pandemia.
Em Portugal, a
primeira morte ocorre a 16 de Março.
Determinam-nos
confinamento.
No último dia de escola, os professores escreveram
no quadro: «Vamos ficar Todos Bem».
As crianças trouxeram a mensagem para casa, algumas fizeram desenhos e colaram nos vidros das janelas.
O vírus tinha galgado todas as fronteiras.
Hoje, Portugal
regista 9.920 mortes e no mundo, esse número atinge os 2.111.560.
Um dia, sempre um
dia, saberemos quem sabia o quê, desde quando, como deixaram que isto, assim se
propagasse.
Chove como ele
gosta que chova.
Gosta de ficar
em casa quando assim chove.
Mas não gosta
que o estupor de um vírus o obrigue a ficar em casa.
Como o dizia o
Almirante, num tal Verão quente: «não
gosto de ser sequestrado… é uma cosa que me chateia, pá!...»
Lembra-se dos versos de um poema do Eugénio de Andrade:
«Que posso eu fazer senão escutar o
coração inseguro dos pássaros, encostar o coração, a minha face ao rosto lunar
dos bêbados e perguntar o que aconteceu…»
Enquanto os dedos
percorriam o teclado, em fundo esteve o Adagio Sostenuto do Concerto Nr. 2 de
Sergei Rachmoninov.
Morro
com duas convicções arreigadas: a de que não há terra mais bela do que a
lusitana e outra tão infeliz.
Miguel Torga em Diário Vol. XII
A
Selva
Ferreira de
Castro
Livraria Editora
Guimarães, Lisboa 1954
Sêco
e vendido na cidadezita mais próxima o que sobejava da papança quotidiana, com
o produto o cabôclo adquiria sal, farinha e cachaça – e emquanto durasse a
fortuna vivia feliz e não voltava a trabalhar. A cachaça, para uso diário, e um
baile, de quando em quando, para desentorpecer as pernas, em qualquer barraca
das margens, constituíam as suas únicas aspirações.
O
resto era solidão profunda, uma vida encastoada na selva, alheia a todas as
inquietações do mundo, uma vida tão aparte, tão obscura e ignorada, que se
ficava a pensar num romance de misantropos que, contudo, não existia.
Quando
um navio passava à vista, a família inteira vinha especar-se no cimo do
barranco, a admirar o fugitivo sintoma da civilização, emquanto um dos garotos
descia a segurar a canôa, não fôssem as ondas desprende-la e a corrente
arrastá-la, de «bubuia», rio abaixo.
Continuam os dias tão difíceis, tão cruéis.
Dez meses de Covis-19 provocaram mais mortes em Portugal do que as baixas militares que sofremos nos três palcos de guerra em África.
O Hospital do Barreiro, devido ao número elevado de mortos, instalou contentores frigoríficos junto à morgue.
A Igreja católica suspendeu todas as missas.
Aos 82 anos
morreu o Capitão de Abril Abrantes Serra que esteve na libertação dos presos
políticos no Forte de Caxias.
Só nos últimos
dias morreram dois médicos com Covid-19 que estavam a trabalhar, disse o
bastonário da Ordem dos Médicos.
Alguém que lhe
pergunte se ele sabe quantos trabalhadores portugueses que, devido ao Covi-19,
têm vindo a morrer.
A Lei da
Eutanásia foi aprovada na especialidade com votos favoráveis do PS, BE, PAN,
abstenção do PSD e votos contra do PCP e CDS.
Rui Rio lamenta
que não se tivesse adiado as eleições presidenciais.
Escolas, creches
e ATL encerrados durante duas semanas.
1.
O Padre Diniz da
Luz, açoriano da ilha de São Miguel, poeta e jornalista, foi colega do Sr.
Francisco de Freitas Santos, meu pai, em A
Voz, jornal monárquico, católico e situacionista.
Era um
benfiquista de não sei quantos costados. Basto conhecido por, na tribuna de
imprensa do velho Campo Grande, vulgo Estância de Madeira, de batina vestida,
chamar, em alto e bom som, cabrão, filho da puta, todos aqueles mimos com que o
povinho mimoseia os árbitros num campo de futebol.
A escandaleira
era de tal ordem que umas virgens ofendidas fizeram queixa ao Pedro Correia
Marques, monárquico, católico, situacionista e director do jornal.
Foi-lhe retirada
a credencial que a Federação dava aos jornais e permitia a entrada nos campos
de futebol.
Para além de
benfiquista, fumava desalmadamente e, em plena segunda guerra, apoiou os
aliados.
Contava o meu
pai, que quando o Benfica perdia e, naquele tempo o Benfica não perdia tanto
assim, o Padre Diniz da Luz ouvia as lamúrias dos benfiquistas da redacção e
adiantava.
«Pois
é, estão chateados, também eu, mas vocês ainda têm mulher!...»
2.
O Governo japonês e o Comité Organizador garantiram a preparação dos jogos,
apesar do aumento de casos de Covid-19 no mundo.
Os Jogos
Olímpicos de Tóquio 2020 arrancam a 23 de julho, mas cada vez mais a situação
pandémica global põe em causa a sua realização.
3.
Para
o romancista argentino, naturalizado canadiano, Alberto Manguel, que cedeu a sua
fabulosa colecção de livros, qualquer coisa como 40 000 volumes, à cidade de
Lisboa, a pátria é o lugar onde instala a sua biblioteca.
4.
Versos de um poema de José Carlos Barros:
«Às vezes pergunto o que fica dos livros, o que pertence e não pertence à
literatura, o que acrescentaram à nossa vida as páginas dos romances.»
O Caso do Rosto Substituído
Erle Stanley Gardner
Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 286
Livros do Brasil, Lisboa s/d
No avião que os levava a Los
Angeles, Della aconchegou-se a Perry Mason e meteu a mão na dele.
- Não a achou linda, chefe?
- Belle?
- Sim. Os seus olhos brilhavam e
estava tão radiantemente feliz, tão segura do seu amor… e do amor de Roy!
- É uma excelente pequena. Só
conheço outra capaz de a vencer. Espero que, um dia, ela…
Della retirou a mão da de Mason e
protestou:
- Nada de sentimentalismos,
chefe! Sabe tão bem como eu que detestaria uma vida familiar, se a tivesse.
Passa o seu tempo a saltar de um assassínio para outro…
Se tivesse mulher, metê-la-ia
numa bela casa… e deixá-la-ia lá ficar. Não precisa de uma mulher, mas precisa
de uma secretária que possa correr riscos consigo… e tem outro caso à sua
espera, em Los Angeles.
- Pergunto a mim próprio o que será… Jackson disse que tinha uma faceta fora do comum, que me interessaria.
No entanto, não deixarei de
mencionar – há excepçoes… - que este deputado-psd-médico-aldrabão, mostra o que são
os médicos direitistas deste país, a começar pelo bastonário da classe, que
passa os seus dias, nas televisões, a pontapear o governo:
« Ricardo
Baptista Leite, médico e deputado do PSD, comissário do Partido nos conclaves
do Infarmed, tem andado a chorar baba e ranho pelas televisões.
Diz o mamífero: «Nunca vi
tantas pessoas morrerem num só turno de 12 horas. Nunca vi tantas mortes, na
minha vida profissional, num tão curto espaço de tempo...»
Mentia sobre vítimas mortais da Covid-19, em Cascais, porque, no seu
turno, morreu apenas uma pessoa.
O nojo é isto, na sua forma mais exacta.
Facto: «O Hospital de
Cascais esclarece que no passado sábado, dia 16 de Janeiro, foram registados
seis óbitos nesta unidade, três dos quais na urgência dedicada a doentes
suspeitos ou positivos Covid-19, tendo um desses óbitos ocorrido no turno entre
as 08h00 e as 20h00.»
E prepara-se uma criatura destas para concorrer à Câmara de Lisboa nas
próximas autárquicas (Setembro). Pelos vistos há excesso de médicos.»
pernoito no
interior do corpo desarrumado
o medo invade o penumbroso corredor
descubro uma cintilação de água no estuque
uma cicatriz de cristais de bolor
abre-se
porosa ao contacto dos dedos indica
que não haverá esquecimento ou brisa
para limpar o tempo imemorial da casa
deste simulado sono ficou-lhe o amargo iodo
as madeiras enceradas cobertas de
poeira
ervas secas à chuva molhos de
rosmaninho
junquilhos, bocas de lobo silenas,
trevo
mas nenhuma fuga foi recomeçada
a infância permanece triste onde a
abandonei
quase não vive
no entanto ouço-a respirar dentro de
mim
agora tudo é diferente
recomeço a viver a partir do vazio
da treva dos dias em silêncio
por entre a pele e um feixe de
magnificas veias
sinto o pássaro da velhice arrastando
as asas
onde desenvolve o calmo voo lunar
enumero cuidadosamente os objectos, classifico-os
por tamanhos por texturas, por funções
quero deixar tudo arrumado quando a
loucura vier
da extremidade aguçada do corpo alado
e o rosto for devassado por um
estilhaço de asa
então a vida abater-se-á sobre a folha de papel
onde verso a verso
me ilumino e me desgasto
Al Berto em O Medo
A América está de volta.
Daqui
a poucas horas Joe Biden passará a ser o 59º Presidente dos Estados Unidos.
Do
louco que o antecedeu, podemos dizer: «vai
e não voltes mais!»
Sair
a custo ele saiu, mas deixa muito terreno minado e Biden vai ter uma
presidência dificílima.
Quem
nele votou, certamente não se questionará de como foi possível votar em algo tão
reles, tão imundo, tão tudo e mais alguma coisa que de mau exista. Os povos
estão pouco dados a autocriticarem-se quando escolhem os maus governantes.
Sem
dúvida, o pior presidente da história dos Estados Unidos.
Trump
sai porta fora, mas o trumpismo fica espalhado pelo país.
Não
quis abandonar a Casa Branca sem ter incitado a um dos ataques mais vis lançado
contra o coração da democracia da América: o assalto ao Capitólio perpetrado
por uma multidão de terroristas domésticos que provocaram a morte, a
destruição, o medo.
Seria
bom pensar que com a eleição de Biden, a América possa voltar a ser a América que
conhecemos.
Mas
não é bem assim.
O
mundo ficou mesmo um lugar muito perigoso.
No domingo, no
paredão em Cascais, foram vistos cidadãos de trela na mão mas sem possuírem
qualquer animal.
Lembrei-me da
anedota que o meu avô Afonso contava:
Entra um homem
na drogaria a pedir esmola para o cego.
Alguém pergunta:
- Mas onde está
o cego?
- Ficou ali for
a ver a montra!...
Colaboração de Aida Santos
Que quem se cala quando me calei não poderá morrer sem dizer tudo.
José Saramago em Os Poemas Possíveis
Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.
Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.
Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.
Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.
José Saramago em Os Poemas Possíveis
O Pequeno Caminho das Grandes
Perguntas
José Tolentino Mendonça
Capa: Rui Rodrigues
Quetzal Editores, Lisboa, Outubro de 2020
Pensemos na figura do pai. Os estereótipos
culturais, os resíduos de modelos autoritários, os tiques marialvas ou a
timidez afastam os pais da palavra aberta e sentida, da confidência ou de
expressões de afecto tão básicas como um abraço. A maior parte de nós não chega
a dizer ao pai como o ama, nem a escutar da parte dele qualquer coisa semelhante.
E esse silêncio tem um custo com o qual, depois, por muito tempo lutamos. É
como se já em vida dos pais vivêssemos uma orfandade simbólica.
Um dos clássicos da literatura
europeia é a Carta ao Pai, de Franz Kafka. É um libelo, de acusação e culpa,
que espelha o dilacerante processo interior em que Kafka viveu. Cresceu à
sombra do pai, mas transportando este nó terrível: por mais que fizesse, jamais
corresponderia às suas exigências.
A nossa cultura tem praticado,
talvez com razões, mas certamente sem razão, uma demolição sistemática da
figura do pai, deixando em nós um vazio que nada consegue colmatar. A figura do
pai precisa, por isso, de ser recuperada.
A
vida é em parte aquilo que nós fazemos dela, e em parte aquilo que é feito
pelos amigos que escolhemos.
Tennessee Williams
Legenda: fotografia Shorpy
Gravando discos para o casamento da Sara, uma vista fabulosa sobre a margem esquerda, uma serena tarde primaveril, a ouvir os galos a cantar nas hortas que circundam o prédio e um porta-contentores da Grimaldi Lines, a fazer-se à acostagem, com a ajuda de rebocador, no Terminal de Contentores de Santa Apolónia.
Vivemos dias dramáticos.
Somos o país na Europa com a média mais alta de novos casos de
Corvid-19 e o quarto país com mais mortes por milhão de habitantes.
Mas o gosto dos portugueses por patetices chegou à campanha para as
presidenciais.
O candidato-vómito entrou por caminhos de ordinarice e nojo que se,
houvesse bom-senso, daria para o meter atrás das grades.
No meio da palhaçada deu-lhe para se meter com o batom da Marisa
Matias.
A mim deu para lembrar uma canção do Herman José que concorreu ao
Festival RTP do ano de 1983.
Tristes vão os tempos!...
Colaboração de Aida Santos
Castelo Branco
Chaves
Cadernos da
Seara Nova
Seara Nova,
Lisboa, 1935
O
estilo é sem dúvida um dos valores máximos da obra de aquilino, especialmente,
pelo imaginoso dêsse estilo. É êste escritor dotado de uma extraordinária
imaginação verbal, de um invulgar poder vocabular. E não é só a abundância; é
também, e especialmente, o singular poder decorativo das palavras que escolhe,
a arte com que as agremia e um assombroso sentido do seu valor prosódico. Tôdas
estas riquezas do estilista sobressaem naquelas suas páginas em que o
descritivo domina e predomina. O seu estilo está apto para toda a descrição,
com um poder de colorido, uma riqueza de tons que assombra e domina.
Possui
Aquilino um verdadeiro talento narrativo, uma arte de contar tão perfeita,
acabada, de tão sugestivo desenho e vivo colorido que lê-lo é uma maravilha e
deleite.
Um
Escritor Confessa-se
Aquilino Ribeiro
Introdução: José
Gomes Ferreira
Livraria
Bertrand, Lisboa, Junho de 1974
O
regicídio, em tanto que obra singular, terá de integrar-se no plano de
demolição, intentado contra o Portugal obsoleto pelos espíritos livres e
esclarecidos, desde a época liberal até os nossos dias. Os protagonistas foram
o braço armado dessa propaganda. Apoucá-los ou engrandecê-los seria cometimento
gratuito, que não cabe em cérebro com dois dedos de caco. Mas porque o
regicídio em sua nebulosidade, em sua paradoxal concepção e feito, quedaria
inexplicável sem o conhecimento psicológico das dramatis personnae, eu
experimento pi9ntá-las sob todas as reservas do meu fraco entender.
Poesia, saudade da prosa;
escrevia «tu», escrevia «rosa»;
mas nada me pertencia,
nem o mundo lá fora
nem a memória,
o que ignorava ou o que sabia.
E se regressava
pelo mesmo caminho
não encontrava
senão palavras
e lugares vazios:
símbolos, metáforas,
o rio não era o
rio
nem corria e a própria morte
era um problema de estilo.
Onde é que eu já lera
o que sentia, até a
minha alheia melancolia?
Manuel António
Pina de Em Prosa Provavelmente em Poesia Reunida
Livio, personagem
do filme de João César Monteiro, «Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço,
a certo ponto do filme diz:
«O
meu pai era um tipo melancólico. Caçava moscas e lia Camilo. Morreu»
Fui, e sou, um
péssimo leitor de Camilo Castelo Branco.
Os livros
existiam na biblioteca do meu pai, mas enamorei-me pelo Eça.
Já tarde no
tempo, fiz várias incursões por alguns livros de Camilo, mas não ficaram
registos.
Tristemente me
espanto, como existindo neste blogue uma etiqueta Olhar as Capas, em que já passaram 1.466 livros da biblioteca da
casa, não haja um livro de Camilo.
E dezenas deles estão
por aqui.
Pior ainda: nem
sequer existe etiqueta do autor.
Que dizer?
Camilo nasceu em
Lisboa no dia 16 de Março de 1825.
Ficou órfão de
mãe com 2 anos e de pai com 10 anos. Foi morar com uma tia e depois com a sua
irmã mais velha.
O resto é a tragédia
de uma vida.
Casamentos
frustrados, seminário, escândalos vários, em que está incluída, cheia de
salero, uma bailarina espanhola, que para a sustentar, Camilo recorre ao jogo
no casino da Póvoa do Varzim, contraindo inúmeras dívidas de jogo, adultério, o
impressionante rapto e casamento com Ana Plácido, filhos, um deles, louco.
A 3 de
Julho de 1890, depois de ter perdido a esperança de recuperar a vista, suicida-se,
em S. Miguel de Seide, disparando um tiro de revólver na têmpora direita.
Camilo Castelo
Branco foi um dos primeiros escritores portugueses a viver exclusivamente do
que escrevia, deixando uma vastíssima e diversificada obra.
Não
sendo um tipo melancólico, nem caçador de moscas, quase nos 76 anos, vou começar a
ler Camilo Castelo Branco.
Deixando, por
ora, os romances, vou ler esta Boémia do
Espírito.
No Preâmbulo,
Camilo explica:
«O
livro é que há-de definir o título.
Se
o leitor, voltada a página final, não tiver encontrado a causa que motivou
semelhante rótulo, também eu não poderei esclarecê-lo.»
E termina:
«Se
perguntassem a Coubert, a Mery, a Léon Gozlan, a Gautier e aos outros porque
eram boémios, e não tabeliães de notas, eles não saberiam responder.»
1.
Continua o frio.
Nesta vida
destrambelhada de confinamento, as notícias não nos fazem esquecer – como se
fosse possível esquecer?! - o que nos
vai acontecendo:
Números
alarmantes dizem-nos que, hoje, registaram-se 166 óbitos e 10.947 novos casos
de infecção.
2.
Doentes esperam,
ao longo dos últimos dias, dentro das ambulâncias, durante horas, à porta das
urgências dos hospitais.
Alguns morrem.
É sempre tarde
quando se chora, mas se a este estado chegámos, é porque utilizámos muito mal o
dinheiro que, em tempo de vacas gordas, nos chegou da Europa. As auto-estradas,
perdidas no interior do país, não são utilizadas, os milhares de rotundas pelo
pedaço espalhadas, servem para o que ninguém sabe o quê.
3.
Manuel Lemos,
presidente da União de Misericórdias Portuguesas:
«O
Estado é o principal responsável pela existência de lares ilegais.»
4.
«Pouca é a distância entre a vida e a
morte.»
De uma canção do folclore
chileno.
Ao Urbano Tavares Rodrigues
Possuirei as mulheres de sábado.
O amor começa nesse dia,
o mundo acaba nesse dia
lembrando-me de sábado gastarei a
semana.
Possuirei as livres mulheres de sábado,
as agrestes mulheres que perfumam
as ruas,
as que trazem no corpo a Primavera,
as que serenamente, respiram
alegria.
Amarei nos cinemas as mulheres de
sábado,
beijá-las-ei em todos os bares.
Esquecer-me-ei que resisti seis
dias
para as ter nos meus braços.
Com as sabáticas mulheres
descobrirei jardins novos à cidade,
despedir-me-ei, sorrindo, dos eléctricos,
dos livros, dos cafés, das lojas
semanais.
Deixarei sobre a mesa os
cigarros.
Os inacabados poemas,
os tristíssimos lenços
que me acompanharam de domingo a
sexta.
Beberei cerveja, tomarei
champanhe
nas bocas abertas das mulheres de
sábado.
Nadarei, feliz, com as doces
mulheres,
falarei apenas de coisas bem
fáceis.
Ou nem falaremos para não erguer
as sombras pesadas de toda a
semana.
comeremos frutos, deitados na
areia
sem olhar estrelas nem nuvens
longínquas.
Sem esforço destruiremos o mundo,
triste pobre mundo dos homens reais.
e, amando-nos, sonharemos que o
domingo
não virá nunca mais.
António Rebordão Navarro