sexta-feira, 15 de setembro de 2023

A PICASSO


 

Picasso foi sempre para mim o que de mais misterioso há, na evidência.

Assim, um trazer-me pela mão, para reconhecer o real.

Como o mestre sabia, e como ninguém mais,

o lado de dentro e o de fora das coisas

nem sempre me foi fácil seguir os perfis imprevistos

com o que os unia o seu traço poderoso.

Ele tinha o segredo desse alfabeto da realidade

e o modo de usar

foi outro segredo que também era seu.

Ninguém podia servir-se desses seus segredos

porque se percebia logo do que se tinha servido.

Por isso Picasso é único.

Depois de Picasso já não nos lembramos

de como seria a pintura antes de Picasso,

quer dizer:

o que teve de fazer, foi de tal modo feito por ele

que acabou por se tornar absolutamente natural.

Foi assim que o século XX nasceu com a palavra

moderno

assinada pela mão de Picasso

e ficou esperando pelo pintor, quase outra tanto tempo,

porque todos os que lhe faziam companhia

só Picasso tinha a caligrafia mais certa

para essa palavra.

Houve, ainda, outra palavra criada para a sua caligrafia

Que deve escrever-se com um hífen

Logo a seguir ao seu nome, assim:

Picasso-Vida

e se quisermos dar um motivo a esse risco ou um nome

podemos chamar-lhe, sem receio, amor,

querendo dizer por exemplo (oh, os exemplos são tantos!)

um corpo de mulher, uma cor

uma estrela, um pedaço de arame torcido entre os dedos,

uma criança, o Minotauro,

um    povo,

ou ainda, a alegria, a gargalhada, a pirueta

e o drama,

a tragédia e a tensão do grito

na surpresa enorme

e insubstituível

da invenção de um rosto para todas as horas do mundo.


Fernando de Azevedo


Legenda: Auto-retrato, 1907

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