Nos terríveis dias de calor infernal deste Verão, Ana Cristina Leonardo chegou, numa crónica no Público, a desabafar: «Em suma, como dizia, e sem querer enganar ninguém, escrever está a ser muito difícil.»
Também senti as terríveis dificuldades e
reparo, agora, que nem sequer referi a
homenagem que a Feira do Livro do Porto dedicou ao Manuel António Pina, uma
homenagem justa e como por lá foi dito, a lembrança dos muitos Pinas que há em
Pina.
Nos 10 anos após a sua morte Manuel
António Pina juntou-se a um leque de autores já anteriormente homenageados como,
entre outros, Ana Luísa Amaral, Vasco Graça Moura, Agustina Bessa-Luís, Mário
Cláudio, Sophia de Mello Breyner Andresen, José Mário Branco, com a atribuição de uma
tília nos Jardins do Palácio de Cristal.
Manuel António Pina viveu sempre entre
livros, papéis e gatos.
Leio agora que Ana Pina, uma das suas
filhas vendeu o certificado do Prémio Camões conquistado pelo pai para ajudar a
pagar as despesas dos gatos, empréstimos e a renda de casa.
A família de Manuel António Pina
pretendia dar os gatos para adoção, mas Ana Pina, que é também escritora e activista
dos direitos dos animais não aceitou esta decisão e já lançou um apelo e uma
angariação de fundos.
«Já tive de vender a minha casa e o meu
carro e o próprio certificado do prémio do meu pai para garantir o bem-estar
dos animais», afirma Ana Pina, acrescentando que sabe que tomou a decisão
certa, uma vez que o pai também era um amante de gatos.
Uma história triste a que me faltam
outros pormenores, principalmente da restante família de António Manuel Pina, e
nestes tempos conturbados de «fakes news», todos os cuidados são necessários.
Mas não resisto em copiar a crónica «Onde se Fala de Gatos e de Homens», publicada
no Jornal de Notícias de 9 de
Novembro de 2005, que reproduzo da página 253 de Crónica Saudade da Literatura:
«Os
meus gatos dormem durante a maior parte do dia (e, obviamente, durante a noite
toda). Suspeito que os gatos têm um segredo, que conhecem uma porta para um
mundo coincidente e feliz, por onde só se passa sonhando. Um mundo criado como
Deus terá criado o nosso humano mundo, à sua desmesurada imagem. Porque os que
sonham são deuses criadores. Os gatos sonham dormindo, os homens sonham fazendo
perguntas e procurando respostas.
Mas
os meus gatos dormem e sonham porque não têm fome. Teriam, se precisassem de
procurar comida, tempo para sonhar? Acontece talvez assim com os homens. Como
se o espírito criador fosse, afinal, prisioneiro do estômago. Talvez, então, a
mesquinhez de propósitos da nossa vida colectiva radique, como nos querem fazer
crer, no défice, e talvez o cumprimento das normas do pacto de estabilidade
seja o único sonho que nos é hoje permitido.
E,
contudo, dir-se-ia (e isto é algo que escapa aos economistas) que é o sonho,
mais do que a balança de pagamentos, que alimenta a vida, e que os povos, como
os homens, precisam de mais do que de números. Os próprios números têm (os
economistas não o sabem porque a sua ciência dos números é uma ciência de
escravos) o poder desrazoável de, não apenas repetir, mas sonhar o mundo.
Há
anos que somos governados por economistas e o resultado está à vista. Talvez
seja chegada a altura de ser a política (e o sonho) a dirigir a economia e não
a economia a dirigir a política. Jesus Cristo «não sabia nada de finanças, /
nem consta que tivesse biblioteca», e o seu sonho, no entanto, continua a mover
o mundo.»
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