sexta-feira, 22 de setembro de 2023

OS GATOS DO MANUEL ANTÓNIO PINA


Nos terríveis dias de calor infernal deste Verão, Ana Cristina Leonardo chegou, numa crónica no Público, a desabafar: «Em suma, como dizia, e sem querer enganar ninguém, escrever está a ser muito difícil.»

Também senti as terríveis dificuldades e reparo, agora, que nem sequer referi  a homenagem que a Feira do Livro do Porto dedicou ao Manuel António Pina, uma homenagem justa e como por lá foi dito, a lembrança dos muitos Pinas que há em Pina.

Nos 10 anos após a sua morte Manuel António Pina juntou-se a um leque de autores já anteriormente homenageados como, entre outros, Ana Luísa Amaral, Vasco Graça Moura, Agustina Bessa-Luís, Mário Cláudio, Sophia de Mello Breyner Andresen,  José Mário Branco, com a atribuição de uma tília nos Jardins do Palácio de Cristal.

Manuel António Pina viveu sempre entre livros, papéis e gatos.

Leio agora que Ana Pina, uma das suas filhas vendeu o certificado do Prémio Camões conquistado pelo pai para ajudar a pagar as despesas dos gatos, empréstimos e a renda de casa.

A família de Manuel António Pina pretendia dar os gatos para adoção, mas Ana Pina, que é também escritora e activista dos direitos dos animais não aceitou esta decisão e já lançou um apelo e uma angariação de fundos.

«Já tive de vender a minha casa e o meu carro e o próprio certificado do prémio do meu pai para garantir o bem-estar dos animais», afirma Ana Pina, acrescentando que sabe que tomou a decisão certa, uma vez que o pai também era um amante de gatos.

Uma história triste a que me faltam outros pormenores, principalmente da restante família de António Manuel Pina, e nestes tempos conturbados de «fakes news», todos os cuidados são necessários.

Mas não resisto em copiar a crónica «Onde se Fala de Gatos e de Homens», publicada no Jornal de Notícias de 9 de Novembro de 2005, que reproduzo da página 253 de Crónica Saudade da Literatura:

«Os meus gatos dormem durante a maior parte do dia (e, obviamente, durante a noite toda). Suspeito que os gatos têm um segredo, que conhecem uma porta para um mundo coincidente e feliz, por onde só se passa sonhando. Um mundo criado como Deus terá criado o nosso humano mundo, à sua desmesurada imagem. Porque os que sonham são deuses criadores. Os gatos sonham dormindo, os homens sonham fazendo perguntas e procurando respostas.

Mas os meus gatos dormem e sonham porque não têm fome. Teriam, se precisassem de procurar comida, tempo para sonhar? Acontece talvez assim com os homens. Como se o espírito criador fosse, afinal, prisioneiro do estômago. Talvez, então, a mesquinhez de propósitos da nossa vida colectiva radique, como nos querem fazer crer, no défice, e talvez o cumprimento das normas do pacto de estabilidade seja o único sonho que nos é hoje permitido.

E, contudo, dir-se-ia (e isto é algo que escapa aos economistas) que é o sonho, mais do que a balança de pagamentos, que alimenta a vida, e que os povos, como os homens, precisam de mais do que de números. Os próprios números têm (os economistas não o sabem porque a sua ciência dos números é uma ciência de escravos) o poder desrazoável de, não apenas repetir, mas sonhar o mundo.

Há anos que somos governados por economistas e o resultado está à vista. Talvez seja chegada a altura de ser a política (e o sonho) a dirigir a economia e não a economia a dirigir a política. Jesus Cristo «não sabia nada de finanças, / nem consta que tivesse biblioteca», e o seu sonho, no entanto, continua a mover o mundo.»

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