quarta-feira, 20 de setembro de 2023

CONVERSANDO


O escritor André Gide escreveu:

«Quando já não me indignar terei começado a envelhecer».

Em 1963, quase clandestinamente, o poeta Fernando Assis Pacheco editou, ao cuidado da revista coimbrã Vértice, o livro de poemas a que chamou Cuidar dos Vivos.

No primeiro verso do poema Poeta no Supermercado, gritava:

«Indignar-me é o meu signo diário».

E quando o primeiro verso de um poema é um grito como este, estamos conversados e também tempo para recordar o poema:

1

Indignar-me é o meu signo diário.
Abrir janelas. Caminhar sobre espadas.
Parar a meio de uma página,
erguer-me da cadeira, indignar-me
é o meu signo diário.


Há países em que se espera
que o homem deixe crescer as patas
da frente, e coma erva, e leve
uma canga minhota como os bois.
E há os poetas que perdoam. Desliza
o mundo, sempre estão bem com ele.
Ou não se apercebem: tanta coisa
para olhar em tão pouco tempo,
a vida tão fugaz, e tanta morte…
Mas a comida esbarra contra os dentes,
digo-vos que um dia acabareis tremendo,
teimar, correr, suar, quebrar os vidros
(indignar-me) é o meu signo diário.

2

Um homem tem que viver.
E tu vê lá não te fiques
- um homem tem que viver
com um pé na Primavera.


Tem que viver
cheio de luz. Saber
um dia com uma saudade burra
dizer adeus a tudo isto.
Um homem (um barco) até ao fim da noite
cantará coisas, irá nadando
por dentro da sua alegria.


Cheio de luz — como um sol.
Beberá na boca da amada.
Fará um filho.
Versos.
Será assaltado pelo mundo.
Caminhará no meio dos desastres,
no meio de mistérios e imprecisões.
Engolirá fogo.
Palavra, um homem tem que ser

 
prodigioso.
Porque é arriscado ser-se um homem.
É tão difícil, é
(com a precariedade de todos os nomes)
o começo apenas.

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