Volta e meia, para ocupar pequenos pedaços de tempo, pego num livro e começo a reler.
Peguei em Um Anjo no Trapézio, do Manuel da Fonseca, e na página 45,
reencontro este parágrafo, por sinal, devidamente sublinhado, bem esgalhado que
está:
«Vindo do lado da Cordoaria, a rua é estreita
como um beco. Alarga à medida que desce. Mas continua sempre estreita,
angustiada, exígua. Fora e dentro das casas, nos quartos divididos por
tabiques, nos corredores. Até nas janelinhas de sacada, bonitas à sua maneira,
mas onde mal se cabe.
É preciso falar, sair das casas, senão sufoca-se. É preciso viver à vista da
rua. Contar tudo, em grupos, pelas tabernas ou de longe, de porta para porta,
de janela para janela. Desabafar, senão cometem-se crimes. Gritar o que se fez
ou anda a pensar fazer. O que se viu ou ouviu. Tudo. Principalmente
acontecimentos da vida íntima. Nossa ou alheia.
Velhos como a rua, de pé, no minúsculo degrau que faz de passeio, os barbeiros
analisam os factos, criticam. Os diálogos refilam de uma vivacidade crua e
mordaz. A ninguém, homem, mulher ou criança, nenhuma palavra é vedada. Obscena,
cruel, satírica, odiosa, desde que sirva usa-se de voz corrente e simples.»
Não foi um livro feliz do Manuel da
Fonseca, apesar de em certas páginas encontrarmos o seu selo:
Relembremos o que aqui já foi escrito
sobre o livro:
«Numa
entrevista a Maria Teresa Horta publicada em A Capital de 20 de Junho de
1968 disse Manuel da Fonseca:
«Pouco depois de “Cerromaior”,
escrevi um romance. Duzentas e tal páginas. Um sujeito que o leu, gostou. Eu
não. Nem o publiquei. Agora, que já tinha “esquecido” o tal romance inédito,
mas não as pessoas, nem os acontecimentos, dei-me à escrita, e as duzentas e tantas
páginas ficaram reduzidas a quarente e nove. O título do conto é o mesmo do romance “Um Anjo no Trapézio”.»
O livro foi
muito mal recebido pela crítica.
Alice Vassalo
Pereira escreveu no “Jornal do Fundão” de 28 de Julho de 1968:
«Manuel da Fonseca publica pouco.
Sabemos isso. Temos dele meia dúzia de livros, e um longo silêncio de cerca de
dez anos entre a publicação do último – “Seara de Vento” – e a de “Um Anjo no
Trapézio” que surge agora nas nossas mãos. Um longo silêncio apenas povoado, de
vez em quando de reedições e trabalhos dispersos por jornais. “Um Anjo no
Trapézio” é a palavra de quebrar o silêncio.
Mas (infelizmente) para certos casos o silêncio continua a ser de oiro. E por vezes (agora) a palavra nem de pedra é…»
José Gomes
Ferreira, nos seus “Dias
Comuns”, 5º volume, no dia 14 de Junho de 1968 escreve esta
entrada:
«O Manuel da Fonseca publicou um livro
novo: “O Anjo no Trapézio.
Ainda não o li, mas gelou toda a gente.
O João José Cochofel:
- É muito mau… Com as palavras
derretidas.
O Augusto Abelaira, a medo, com a
delicadeza natural de não dizer mal dos ausentes:
- “O Fogo e as Cinzas” é um livro
formidável.
O Carlos de Oliveira sacode a cabeça
apavorado com esta verificação:
É terrível! Pode perder-se o talento!
Desgosto de família.
Damos os pêsames uns aos outros. Sinceros.»
Sem comentários:
Enviar um comentário