Ninguém me perguntou mas se o fizessem responderia que não concordo com a trasladação dos restos mortais de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional.
Eça, numa carta a Pinheiro Chagas, afirmou-se
que era «apenas um pobre homem da Póvoa
do Varzim.»
E um tal dito «pobre homem», gostará
mais de continuar na tranquilidade de uma serra que ele proclamou tranquila.
Eça de Queiroz morreu em 16 de agosto de
1900 em Neuilly-sur-Seine. A 16 de Setembro chegaram a Lisboa os seus restos
mortais que ficaram depositados em jazigo que pertencia à família Resendes. Aí
ficaram até Setembro de 1989 quando foram transportados para um jazigo de
família, em Tormes, Baião, no cemitério de Santa Cruz do Douro.
«Sacudi
violentamente Jacinto:
—
Acorda, homem, que estás na tua terra!
Ele
desembrulhou os pés do meu paletó, cofiou o bigode, e veio sem pressa, á
vidraça que eu abrira, conhecer a sua terra.
—
Então é Portugal, hein?... Cheira bem.
—
Está claro que cheira bem, animal!
A
sineta tilintou languidamente. E o comboio deslisou, com descanso, como se
passeasse para seu regalo sobre as duas fitas de aço, assobiando e gozando a
beleza da terra e do céu.
O
meu Príncipe alargava os braços, desolado:
—
E nem uma camisa, nem uma escova, nem uma gota de água-de-colónia!... Entro em
Portugal, imundo!
—
Na Régua há uma demora, temos tempo de chamar o Grilo, reaver os nossos
confortos... Olha para o rio!
Rolvamos
na vertente de uma serra, sobre penhascos que desabavam até largos socalcos
cultivados de vinhedo. Em baixo, numa esplanada, branquejava uma casa nobre, de
opulento repouso, com a capelinha muito caiada entre um laranjal maduro. Pelo
rio, onde a água turva e tarda nem se quebrava contra as rochas, descia,
com a vela cheia, um barco lento carregado de pipas. Para além, outros
socalcos, d’um verde pálido de reseda, com oliveiras apoucadas pela amplidão
dos montes, subiam até outras penedias que se embebiam, todas brancas e
assoalhadas, na fina abundancia do azul. Jacinto acariciava os pêlos corredios
do bigode:
—
O Douro, hem?... É interessante, tem grandeza. Mas agora é que eu estou com uma
fome, Zé Fernandes!»
A
Cidade e as Serras, página 118, edição do Círculo de
Leitores, Setembro 1984
E faltava um tempinho para…
«Uma formidável moça, de enormes peitos
que lhe tremiam dentro das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbraseada
do calor da lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar. E o
Melchior, que seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que Suas Incelências
lhe perdoassem porque faltara tempo para o caldinho apurar... Jacinto ocupou a
sede ancestral- e durante momentos ( de esgazeada ansiedade para o caseiro
excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a
fusca colher de estanho. Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de
galinha e rescendia. Provou- e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns
olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia,
mais considerada. E sorriu, com espanto: - Está bom!
Estava preciso: tinha fígado e tinha
moela: o seu perfume enternecia: três vezes, fervorosamente, ataquei aquele
caldo
- Também lá volto! – exclamava Jacinto
com uma convicção imensa. ~É que estou com uma fome… Santo Deus! Há anos que não
sinto esta fome.
Foi ele que rapou avaramente a sopeira.
E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de
peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado – e
pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que
desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominava favas!... Tentou todavia uma
garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara,
luziram procura os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade
que se regala. Depois um brado:
-Óptimo!... Ah, destas favas, sim! Ó que fava! Que delícia!
E por esta santa gula louvava a serra, a
arte perfeita das mulheres palreiras que em baixo remexiam as panelas, o
Melchior que presidia ao bródio…
- Deste arroz com fava nem em Paris,
Melchior amigo!
O homem óptimo sorria, inteiramente desanuviado:
— Pois é cá a comidinha dos moços da
quinta! E cada pratada, que até suas Incelências se riam... Mas agora, aqui,
o Sr. D. Jacinto, também vai engordar e enrijar!»
A
Cidade e as Serras, página 131, edição do Círculo de
Leitores, Setembro 1984
Tormes.
Deixar Tormes para a frieza das paredes
de um Panteão?
Ninguém me perguntou mas…
«Em
fila começámos a subir para a serra. A tarde adoçava o seu esplendor de Estio.
Uma aragem trazia, como ofertados, perfumes de flores silvestres. As ramagens
moviam, com um aceno de doce acolhimento, as suas folhas vivas e reluzentes.
Toda a passarinhada cantava, num alvoroço de alegria e de louvor. As águas
correntes, saltantes, luzidias, despediam um brilho mais vivo. Numa pressa mais
animada. Janelas distantes de casas amáveis flamejavam com um fulgor de ouro. A
serra toda se ofertava, na sua beleza eterna e verdadeira.»
A
Cidade e as Serras, página 230, edição do Círculo de
Leitores, Setembro 1984.
Legenda: Casa de Tormes, fotografia da
Fundação Eça de Queiroz.
2 comentários:
A mim também ninguém me perguntou, Sammy.
Se me perguntassem, abanava os ombros. Tanto se me dá como se me deu.
Mas trata-se também de um problema de democracia e de direito. Uma minoria quer sobrepor a sua vontade a uma maioria...
Sei que já não vivemos bem numa democracia, e por isso mesmo, não são precisos mais atropelos.
A Ana Cristina Leonardo terminava a sua crónica de ontem no «Ipsilon» do «Público»:
«Li que querem transladar Eça de Queiroz para o Panteão Nacional e que parte da família é contra. Dado o estado das artes e não sendo nada comigo, só posso reproduzir a frase de um vizinho a propósito de um outro que tinha a estranha mania de se trancar em casa: “Deixem o homem sossegado!»
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