Não
devem restar dúvidas de que As Pequenas
Memórias é um livro maravilhoso.
De
uma simplicidade cativante regista o quase tudo da formação de que fará de José
Saramago o escritor, o cidadão que conhecemos:
«Nunca
fui grande pescador. Usava, como qualquer outro rapaz da mesma idade e de
posses tão modestas como eram as minhas, uma cana vulgar com o anzol a chumbada
e a bóia de cortiça atados ao fio de pesca, nada que se parecesse com os
artefactos modernos que por ali haveriam de aparecer mais tarde e que cheguei a
ver em mãos de alguns amadores locais quando já era crescido e me havia deixado
de ilusões piscatórias. Como consequência, as minhas capturas sempre se
reduziram a uns poucos pampos, barbos uma raridade e pequenos, e muitas horas
passadas em vão (em vão, a bem dizer, nenhuma, porque, sem que me desse conta,
ia «pescando» coisas que no futuro não viriam a ser menos importantes para mim,
imagens, cheiros, rumores, aragens, sensações). Ao sol, se não castigava
demasiado, ou à sombra de algum salgueiro chorão, à espera de que o peixe
picasse. Em geral, sentado à beira de água, operava no «rio da minha aldeia», o
Almonda, ao fim da tarde, porque com os grandes calores já se sabia que os
peixes se metiam nas locas e não vinham ao isco. Outras vezes, de um lado ou do
outro da desembocadura do nosso rio, e em algumas assinaladas ocasiões, remando
para mais longe, atravessava o Tejo para a margem sul, e aí me deixava ficar,
abrigado pela maracha como se estivesse debaixo de um dossel, que era como mais
gostava. Os pescadores eméritos da terra gabavam-se de ter os seus próprios
métodos, as suas estratégias, as suas artes mágicas, que geralmente duravam uma
temporada para logo darem lugar a outros métodos, a outras estratégias, a
outras mágicas artes sempre mais eficazes que as anteriores. Nunca cheguei a
beneficiar de nenhuma delas.»
Legenda: fotografia de Winslow Homer
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