terça-feira, 12 de setembro de 2023

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Relendo as páginas que se seguem, tiradas de O Ensaio Sobre Lucidez, ocorreu-me os trabalhos a que parte do povo, correspondendo a uma ideia de Vasco Gonçalves, se dedicou no 5 de Outubro de 1974, limpando monumentos, paredes, executando as mais diversas tarefas.

Como talvez lembrasse José Saramago: «Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres».

 

«No dia seguinte confirmou-se o rumor, os camiões da limpeza urbana não saíram à rua, os recolhedores do lixo declararam-se em grave total e tornaram públicas umas reivindicações salariais que o porta-voz da câmara imediatamente acudiu a protestar serem de todo inaceitáveis, e muito menos nesta altura, disse, quando a nossa cidade se encontra a braços com uma crises sem precedentes e de desenlace altamente problemático, Na mesma linha de acção alarmista, um jornal que desde a sua fundação se tinha especializado no ofício de amplificador das estratégias e tácticas governamentais, fossem quais fossem as suas cores partidárias, do meio, da direita, e dos matizes intermédios, publicava um editorial assinado pelo director em que se admitia como muito provável que a rebeldia dos habitantes da capital viesse a terminar num banho de sangue se estes, como tudo fazia esperar, não viessem a depor a sua obstinação. Ninguém, dizia, se atreverá a negar  que o governo lebou a sua paciência a extremos impensáveis, mais não se lhe poderá pedir, ou então perder-se-ia, e talvez para sempre, aquele harmonioso binómio autoridade-obediência à luz do qual floresceram as mais felizes sociedades humanas e sem o qual, como a história amplamente o tem demonstrado, nem uma só delas teria sido exequível. O editorial foi lido, a rádio repetiu as passagens principais, a televisão entrevistou o director, e nisto se estava quando, meio-dia exacto era, de todas as casas da cidade saíram mulheres armadas de vassouras, baldes e pás, e, sem uma palavra, começaram a varrer as testadas dos prédios em que viviam, desde a porta até ao meio da rua, onde se encontravam com outras mulheres que, do outro lado, para o mesmo fim e com as mesmas armas, haviam descido. Afirmam os dicionários que a testada é a parte de uma rua ou estrada que fica à frente de um prédio, e nada há de mais certo, mas também dizem, dizem-no pelo menos alguns, que varrer a sua testada significa afastar de si alguma responsabilidade ou culpa. Grande engano o vosso, senhores filólogos e lexicólogos distraídos, varrer a sua testada começou por ser precisamente o que estão a fazer agora estas mulheres da capital, como no passado também o haviam feito, nas aldeias, as suas mães e avós, e não o faziam elas, como o não fazem estas, para afastar de si uma responsabilidade, mas para assumi-la. Possivelmente foi pela mesma razão que ao terceiro dia saíram à rua os trabalhadores da limpeza. Não traziam uniforme, vestiam à civil. Disseram que os uniformes é que estavam em greve, não eles.»

José Saramago em Ensaio Sobre a Lucidez, página 105

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