Léah
José Rodrigues
Miguéis
Capa: Bernardo Marques
Colecção
Latitude nº 24
Estúdios Cor,
Lisboa, Fevereiro de 1958
Olho cá de cima esta Avenida, que foi pacata e alheia
ao mundo, e quase nem a reconheço. Se quer que lhe diga, chego a ter saudades.
Antigamente havia uma 79 honestidade quase dolorosa em tudo isto, um recato nas
aparências. Isto era provinciano mas sincero. Entrou aqui um fungo misterioso.
Muita cara nova, outros costumes, quartos de aluguel, casas suspeitas. Mães de
família com meias de nylon que saem sozinhas à tarde e só voltam altas horas,
ou de madrugada, de táxi... Uma encruzilhada da desintegração. Já nem gosto de
olhar. Enoja-me este ersatz barato de babilônia, esta sucursal da Baixa em dó-
mesquinho. Agora os mortos vão a gasolina, sem mais ajuda de Chopin; não há
cortejos, nem desfiles, nem charangas animadoras. Os Santos Populares,
oficializados, tornaram-se estranhos, esquecidos. Até o luar parece outro,
distante. As noites abafam, acabou-se a brisa das hortas, repelidas pelo
cimento das novas construções. Obras, obras! Há quem goste disto, e até quem
lhe chame Progresso. Sobe da rua um estrondo odioso, os cafés ali da Praça
sempre cheios de gente pasmada a ler da bola. Ouvem-se latir altos-falantes. A
cervejaria, acolá, extravasa cascas de amendoim, de tremoços, restos de
mariscos, sempre cheia de gentalha, patos-bravos que só falam de negócios,
traficâncias, fêmeas de comprar e vender. Onde estão os pregões, os descantes,
as guitarradas, os amores, os alarmes, a inocência, a poeira de outrora? Onde
estamos nós mesmos? Sim, por baixo deste manga d’alpaca promovido e desiludido,
onde estou eu? Para não me perder de mim mesmo, nem perder pé na vida, ainda de
vez em quando ergo o canto da cortina, e fico a olhar o que para mim, para os
da velha-guarda cá do sítio (que poucos restam), foi e há de ser a Casa da Dona
Genciana.
(Do conto Saudades
para a Dona Genciana)
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