São poucos os que vão descer. O vapor atracou, já
arriaram a escada do portaló, começam a mostrar-se em baixo, sem pressa, os
bagageiros e os descarregadores e os descarregadores, saem do refúgio dos
alpendres e guaritas os guardas-fiscais de serviço, assomam os alfandegueiros.
A chuva abrandou, só quase nada. Juntam-se no alto da escada os viajantes,
hesitando, como se duvidassem de ter sido autorizado o desembarque, se haverá
quarentena, ou temessem os degraus escorregadios, mas é a cidade silenciosa que
os assusta, porventura morreu a gente nela e a chuva só está caindo para diluir
em lama o que ainda ficou de pé. Ao comprido do cais, outros barcos atracados
luzem mortiçamente por trás das vigias baças, os paus-de-carga são ramos esgalhados de árvores, negros, os
guindastes estão quietos. É domingo. Para além dos barracões do cais começa a
cidade sombria, recolhida em frontarias e muros, por enquanto ainda defendida
da chuva, acaso movendo uma cortina triste e bordada, olhando para fora com
olhos vagos, ouvindo gorgulhar a água dos telhados, algeroz abaixo até ao
basalto das valetas, ao calcário nítido dos passeios, às sargetas pletóricas,
levantadas algumas, se houve inundação.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
Sem comentários:
Enviar um comentário