Montedemo
Hélia Correia
Capa: Ana Leão
Colecção Imagem
do Corpo nº 7
Ulmeiro, Lisboa,
Novembro de 1983
Mais tarde alguns lembraram que tudo começou naquele
domingo seco em que a terra tremeu. Coisa sem importância, num instante sentida
noutro instante acalmada, nem mesmo Irene a tonta pensou que lhe servisse de
mote em pregação. Um
tremor ligeirinho no afrouxar da noite, hora de moribundos e de bêbados, todos
pensando que se balouçavam em líquidos maternos, quentes e protectores. Os
outros, muito poucos, que estavam acordados: mulheres suspensas do tossir das
crias, velhos apunhalados por insónias, tinham ficado na dúvida se fora
realmente o chão que se ondeara numa sacudidela ou se tontura provocada por um
sangue de repente engrossado ao de cima dos olhos. O padre chegou mesmo a
confessar que achara muito estranho terem tocado os sinos apenas com aquele abanãozico.
Mas a manhã nasceu radiosa e gelada, e o próprio mar parecia tão sem peso, tão
dançarino e limpo de pecado, que o assunto passou ao esquecimento.
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