Jorge Silva Melo tinha um jeito único para escrever
obituários, jeito seu, principalmente de artistas com quem tinha trabalhado,
envolvendo-os numa beleza que não sei bem definir.
Muitos desses lindíssimos obituários encontram-se nos seus livros Século Passado e A Mesa Está Posta.
Sobre a morte do actor Henrique Canto e Castro, em Século Passado - «…e eu sempre gostei dele, da pessoa, e do actor» - Silva Melo vai buscar uma tarde quentíssima de Verão, saídos do São Jorge, onde viram O Touro Enraivecido, em que desataram a andar, conversando sobre tudo e mais alguma coisa.
«E a certa altura, o Henrique falou-me do pai, devíamos já estar nos
Restauradores, pai médico que não tinha ousado profissionalizar-se como músico,
toda a vida hesitante, talvez arrependido, dizia-me o Henrique, mas que toda a
vida tocou, e o Henrique e o irmão cresceram com ele a tocar-lhes o Kreisler, o
Paganini, mas sobretudo, contava ele, a “Meditação” da Thais de Massenet.
Fui com o Henrique até aos barcos, ele já morava em Almada. E lembro-me que estava de sandálias. E agora que morreu, veio-me logo à memória aquele pai, médico e amador, republicano e culto, hesitante que, num terceiro andar, aos fins de tarde ou aos domingos, tocava a “Meditação”. Podem dizer que é música, sentimental, kitsch, fácil, truque, o que quiserem, que é música que defende o passado, que é música indolentemente reacionária, que é uma piroseira. Mas eu gosto da “Meditação” da Thais de Massenet.. Porque gosto de ti, Henrique Canto e Castro, actor dilacerado num tempo que o não mereceu, gosto desse pai que não ousou ser artista e toda a vida hesitou entre a família e a arte, gosto desses domingos republicanos em que o pai tocava Massenet para os filhos. E gosto de artistas que sabem mais do que os seus botões, e me falam de boxe, violino, pintura ou edições. Não há muitos,»
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