Numa entrevista, não muito recente, Carlos Tê disse que Romance de um dia na estrada, de Sérgio Godinho, Queixa das almas jovens censuradas, poema de Natália Correia cantado pelo Zé Mário Branco, «foi algo que lhe tocou que o obrigou a pensar. Ouvi-os no Página Um do José Manuel Nunes e a sensação foi “Espera lá, alguém me está a falar de um sítio qualquer e na minha própria língua”. Foi um sinal.»
«Haverá sempre alguém, em qualquer parte do Mundo, que nunca tendo lido
um livro será alcançado por um bocadinho de poesia que a canção traz. Uma arma
invencível e por isso planetária. Fui tocado várias vezes. Ouvir as coisas do
(Leonard) Cohen, “Songs of love and hate”, por exemplo, e sem perceber exactamente
o que estava em causa ou o que ele queria dizer com aquilo, saber que estava
ali poesia. Que a canção entrava pela poesia e que a poesia entrava pela
canção.»
Por fim: «Nunca me lamentei por estar sozinho.»
As duas canções de
que fala Carlos Tê, são as mesmas que me levaram a comprar os discos do Sérgio
e do Zé Mário, duas canções notáveis, principalmente Romance de um dia na estrada, que cheguei a ter em EP, editado pela
Guilda Música, Prémio de Imprensa de 1971, misteriosamente desaparecido, como
tantos outros, muito antes do LP.
Andava há já vinte dias
Ao frio, ao vento e à fome
Às escondidas da sorte
Um dia fraco, outro forte
Que o dia em que se não come
É um dia a menos para a morte
Um dia fraco, outro forte
Quando um barulho de cama
A voltar-se de impaciente
Me fez parar de repente
Era noite e o casarão
Não tinhas lados nem frente
Dentro havia luz e pão
Me fez parar de repente
Ó da casa, abram-me a porta
Fiz as luzes se apagarem
Cheguei-me mais à janela
Vi acender-se uma vela
Passos de mulher andarem
E uma mulher muito bela
Chegou-se mais à janela
Não tenhas medo, eu não trago
Nem ódio nem espingardas
Trago paz numa viola
Quase que não fui à escola
Mas aprendi nas estradas
O amor que te consola
Trago paz numa viola
Meu marido foi pra longe
Tomar conta das herdades
Ela disse "Companheiro"
Eu disse "Vem", ela "Tu primeiro"
"Tu que me falas de estradas"
"E eu só conheço um carreiro"
Ela disse "Companheiro"
A contas com a nossa noite
Afundados num colchão
Entre arcas e um reposteiro
Descobrimos um vulcão
Era o mês de Fevereiro
E o Inverno se fez Verão
Descobrimos um vulcão
E eu que falava de estradas
E só conhecia atalhos
E ela a mostrar-me caminhos
Entre chaminés e orvalhos
Pela manhã, sem agasalhos
Voltei a rumos sozinhos
E ela a mostrar-me caminhos
Andarei mais vinte dias
ao frio, ao vento e à fome
Às escondidas da sorte
Um dia fraco, outro forte
Que o dia em que se não come
É um dia a menos para a morte
Um dia fraco, outro forte
Um dia fraco, outro forte
Sem comentários:
Enviar um comentário