Voltar aos Sublinhados Saramaguianos, voltar aos Cadernos de Lanzarote que, apesar de algumas escritas datadas, continua a ser um sítio bom para conhecer facetas diversas de Saramago.
No 2º volume, a páginas 194, um episódio que revela
bem as agruras de Saramago face aos críticos, sempre interessados em pormenores
cujo único interesse não é a crítica ao autor, antes a sua depreciação
literária/política.
O episódio passa-se com o Torcato Sepúlveda
controverso, mera opinião pessoal, jornalista do Público:
«Começando por
reclamar a reedição de Os Comediantes de Graham Greene (por causa do Haiti) e
de Três Tristes Tigres de Cabrera Infante (por causa de Cuba), Torcato
Sepúlveda, da sua tribuna do Público, invectiva os intelectuais portugueses, em
particular os escritores, acusando-os de se manterem calados perante os
atropelos, erros e crimes das ditaduras de todas as cores, especialmente as que
se definiram ou definem ainda pelo uso político-ideológico do vermelho. Depois
de assim ter tomado distância para caberem todos no retrato, chega-se à frente
e passa a um grande plano: a cara, o nome e o feitio de quem estes Cadernos
escreve. Diz Torcato Sepúlveda: «Uma ditadura é uma ditadura, seja ela de
esquerda ou de direita. Disso deve convencer-se gente como José Saramago, que
tanto critica a Comunidade Europeia, às vezes com carradas de razão. Mas a
independência moral exigir-lhe-ia que não poupasse igualmente os amores
revolucionários da sua juventude, quando eles se transformaram em burocracias
estalinistas abjectas. As imbecilidades diplomáticas dos EUA, que atiraram os
"barbudos" da Sierra Maestra para os braços de Moscovo, não desculpam
conivências com um bolchevismo "caribefío" que cala qualquer voz
opositora e arrasta os cubanos, em nome de uma ideologia enlouquecida, para a
degradação física e mental.»
Lisonjear-me-ia muito pensar que Torcato Sepúlveda escreveu o seu artigo expressamente para mim (uma vez que não menciona qualquer outro escritor português), mas, tendo em conta o longe que vivo e o facto de o Público não se vender no aeroporto de Arrecife, sou obrigado a acreditar que o único propósito de Sepúlveda, além de apelar à mobilização geral da intelectualidade portuguesa, foi enfiar-me no pescoço um letreiro com a palavra «desertor». Ora bem, a Torcato Sepúlveda tenho de informar que, escrevendo ou de viva voz, disse sempre o que pensava dos atropelos, erros e crimes das ditaduras (castanhas, verdes ou vennelhas) e das democracias (brancas, pardas ou azuis) deste mundo. Se ele não deu por isso, azar meu. Mas, uma vez que vem agora falar-me de Cuba (outras vezes foi a União Soviética, outras vezes foi o Diário de Notícias...), dir-lhe-ei que, apesar dos crimes, dos erros e dos atropelos do que chamam «castrismo», continuarei a defender Fidel Castro contra Clinton, por muito «democrata» que pareça um e muito «tirano» que outro pareça. «Por causa da moral», precisamente, como me exige o mesmo Torcato Sepúlveda no princípio e no fim do seu artigo.»
Legenda: paisagem de Lanzarote
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