sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


 Voltar aos Sublinhados Saramaguianos, voltar aos Cadernos de Lanzarote que, apesar de algumas escritas datadas, continua a ser um sítio bom para conhecer facetas diversas de Saramago.

No 2º volume, a páginas 194, um episódio que revela bem as agruras de Saramago face aos críticos, sempre interessados em pormenores cujo único interesse não é a crítica ao autor, antes a sua depreciação literária/política.

O episódio passa-se com o Torcato Sepúlveda controverso, mera opinião pessoal, jornalista do Público:

«Começando por reclamar a reedição de Os Come­diantes de Graham Greene (por causa do Haiti) e de Três Tristes Tigres de Cabrera Infante (por causa de Cuba), Torcato Sepúlveda, da sua tribuna do Público, invectiva os intelectuais portugueses, em particular os escritores, acusando-os de se manterem calados perante os atropelos, erros e crimes das ditaduras de todas as cores, especialmente as que se definiram ou definem ainda pelo uso político-ideológico do vermelho. Depois de assim ter tomado distância para caberem todos no retrato, chega-se à frente e passa a um grande plano: a cara, o nome e o feitio de quem estes Cadernos escre­ve. Diz Torcato Sepúlveda: «Uma ditadura é uma di­tadura, seja ela de esquerda ou de direita. Disso deve convencer-se gente como José Saramago, que tanto cri­tica a Comunidade Europeia, às vezes com carradas de razão. Mas a independência moral exigir-lhe-ia que não poupasse igualmente os amores revolucionários da sua juventude, quando eles se transformaram em burocra­cias estalinistas abjectas. As imbecilidades diplomáticas dos EUA, que atiraram os "barbudos" da Sierra Maestra para os braços de Moscovo, não desculpam conivências com um bolchevismo "caribefío" que cala qualquer voz opositora e arrasta os cubanos, em nome de uma ideo­logia enlouquecida, para a degradação física e mental.»

Lisonjear-me-ia muito pensar que Torcato Sepúlve­da escreveu o seu artigo expressamente para mim (uma vez que não menciona qualquer outro escritor portu­guês), mas, tendo em conta o longe que vivo e o facto de o Público não se vender no aeroporto de Arrecife, sou obrigado a acreditar que o único propósito de Sepúl­veda, além de apelar à mobilização geral da intelectua­lidade portuguesa, foi enfiar-me no pescoço um letreiro com a palavra «desertor». Ora bem, a Torcato Sepúl­veda tenho de informar que, escrevendo ou de viva voz, disse sempre o que pensava dos atropelos, erros e crimes das ditaduras (castanhas, verdes ou vennelhas) e das de­mocracias (brancas, pardas ou azuis) deste mundo. Se ele não deu por isso, azar meu. Mas, uma vez que vem agora falar-me de Cuba (outras vezes foi a União So­viética, outras vezes foi o Diário de Notícias...), dir-lhe­-ei que, apesar dos crimes, dos erros e dos atropelos do que chamam «castrismo», continuarei a defender Fidel Castro contra Clinton, por muito «democrata» que pa­reça um e muito «tirano» que outro pareça. «Por causa da moral», precisamente, como me exige o mesmo Torcato Sepúlveda no princípio e no fim do seu artigo.»

Legenda: paisagem de Lanzarote

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