quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

OS COMBOIOS NÃO DEIXARIAM DE PASSAR

«Talvez eu pudesse ouvir passos à porta do quarto, passos ligeiros que estacariam, enquanto a minha vida, e toda a vida, se suspenderia. Eu existiria então vagamente, alimentado pela violência de uma esperança, preso à respiração obscura respiração dessa pessoa parada. Os comboios não deixariam de passar. Estaria a pensar nas palavras do amor, naquilo que se pode dizer quando a extrema solidão nos dá um talento inconcebível. O meu talento na verdade seria o máximo talento do homem e devia reter, só pela sua força silenciosa, essa pessoa que estava em frente da porta, a poucos centímetros, à distância de um simples movimento caloroso. Mas, nesse instante, ser-me-ia revelada a verdadeira crueldade do espírito humano. É que eu penso que não desejaria nada mais do que a presença incógnita e solitária dessa pessoa atrás da porta.»


Herberto Helder em Os Passos em Volta

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