A Aida quis reler A Terra do Pecado mas o livro, comprado há muitos e muitos anos num alfarrabista, oferece poucas garantias para ser lido sem se desfazer. Houve que comprar um novo exemplar, edição da Porto Editora, Fevereiro de 2020, caligrafia do título na capa da autoria de José Luís Peixoto.
O livro tem um Aviso, escrito por José Saramago, sem
indicação de data. Com toda a certeza, quando Saramago o escreveu, não o teria
escrito em acordês.
Provavelmente, nunca saberei das razões que levaram a
editora, ou os herdeiros de Saramago, a publicar os livros do Nobel Português,
fora da ortografia utilizada pelo autor.
É o Sublinhado Saramaguiano de hoje:
«O autor é um rapaz de vinte e quatro anos, calado, metido consigo, que
ganha a vida como praticante de escrita nos serviços administrativos dos
Hospitais Civis de Lisboa, depois de ter estado a trabalhar durante mais de um
ano como aprendiz de serralharia mecânica nas oficinas dos ditos hospitais. Tem
poucos livros em casa porque o ordenado é pequeno, mas leu na Biblioteca
Municipal das Galveias, tempos atrás, tudo quanto a sua compreensão logrou
alcançar. Ainda estava solteiro quando um caridoso colega da repartição,
segundo-oficial, de apelido Figueiredo, lhe emprestou trezentos escudos para
comprar os livrinhos da coleção «Cadernos» da Editorial Inquérito. A sua
primeira estante foi uma prateleira interior do guarda-louça familiar. Neste
ano de 1947 em que estamos nascer-lhe-á uma filha, a quem medievalmente dará o
nome de Violante, e publicará o romance que tem andado a escrever, esse a que
chamou A Viúva mas
que vai aparecer à luz do dia com um título a que nunca se há de acostumar.
Como no tempo em que viveu na aldeia já havia plantado umas quantas árvores,
pouco mais lhe resta para fazer na vida. Supõe-se que escreveu este livro
porque numa antiga conversa entre amigos, daquelas que têm os adolescentes,
falando uns com os outros do que gostariam de ser quando fossem grandes, disse
que queria ser escritor. Em mais novo o seu sonho era ser maquinista de caminho
de ferro, e se não fosse por causa da miopia e da diminuta fortaleza física,
imaginando que não perderia a coragem entretanto, teria ido para aviador
militar. Acabou em manga de alpaca do último grau da escala hierárquica, e tão
cumpridor e pontual que à hora de começar o serviço já está sentado à pequena
mesa em que trabalha, ao lado da prensa das cópias. Não sabe dizer como lhe
veio depois a ideia de escrever a história de uma viúva ribatejana, ele que de
Ribatejo saberia alguma coisa, mas de viúvas nada, e menos ainda, se existe o
menos que nada, de viúvas novas e proprietárias de bens ao luar. Também não
sabe explicar por que foi que escolheu a Parceria António Maria Pereira quando,
com notável atrevimento, sem padrinhos, sem empenhos, sem recomendações, se
decidiu a procurar um editor para o seu livro. E ficará para sempre como um dos
mistérios impenetráveis da sua vida haver-lhe escrito Manuel Rodrigues, da
Editorial Minerva, dizendo ter recebido A Viúva na sua casa por intermédio da Livraria Pax, de
Braga, e que passasse ele pela Rua Luz Soriano, que era onde estava a editora.
Em momento nenhum ousou o autor perguntar a Manuel Rodrigues por que aparecia a
tal Pax metida no caso, quando a verdade é que só tinha enviado o livro à
António Maria Pereira. Achou que não era prudente pedir explicações à sorte e
dispôs-se a ouvir as condições que o editor da Minerva tivesse para lhe propor.
Em primeiro lugar, não haveria pagamento de direitos. Em segundo lugar, o
título do livro, sem atrativo comercial, deveria ser substituído. Tão pouco
habituado estava o nosso autor a andar com tostões de sobra no bolso e tão
agradecido a Manuel Rodrigues pela aventura arriscada em que se ia meter, que
não discutiu os aspetos materiais de um contrato que nunca veio a passar de
simples acordo verbal. Quanto ao rejeitado título, ainda conseguiu murmurar que
iria tentar outro, mas o editor adiantou-se, que já o tinha, que não pensasse
mais. O romance chamar-se-ia Terra
do Pecado. Aturdido pela vitória de ir ser publicado e pela derrota de
ver trocado o nome a esse outro filho, o autor baixou a cabeça e foi dali
anunciar à família e aos amigos que as portas da literatura portuguesa se
tinham aberto para ele. Não podia adivinhar que o livro terminaria a pouco
lustrosa vida nas padiolas. Realmente, a julgar pela amostra, o futuro não terá
muito para oferecer ao autor de A
Viúva.
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