quarta-feira, 23 de novembro de 2022

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


A Jangada de Pedra encontra-se na lista dos menos amados romances de José Saramago. 

O saramaguiano que sou, está nesse lote dos que, ou por não se ter entendido o livro como se dever entender o que se lê, ou por motivos não explicados devidamente, não têm pela obra o mesmo gosto que dedicam a outras obras de Saramago.

No seu livro A Estátua e a Pedra, Saramago adianta como vê a Península Ibérica desprendendo-se da Europa, navegando Atlântico fora, a vogar para o seu lugar próprio entre a América do Sul e a África Central.

 

«A Jangada de Pedra , como se sabe, é a Península Ibérica, que se separa sem trauma da Europa e que vai flutuando pelo mar fora como uma jangada, come una zattera, até parar, até se fixar entre a América do Sul e a África. Uma ilha, a Península Ibérica transformada numa ilha, e enfim o livro foi entendido de diversas maneiras sobretudo negativas. Foi dito e redito e mil vezes proclamado que era um livro escrito contra a Europa como se um pobre romancista pudesse escrever qualquer coisa contra a Europa. E quem leu o livro efectivamente com olhos de ler e sobretudo quem conhece a trajectória do autor também entende que o leitor reage em relação a um livro e não tem que fazer passar as suas opiniões sobre esse livro, por um conhecimento que ele tenha sobre a própria vida do autor, e aquilo que ele diz, e aquilo que ele faz. Mas alguém, e que ainda por cima nem sequer era um crítico literário, mas um político catalão, escreveu um artigo extremamente interessante em que ele dizia mais ou menos isto, Não nos equivoquemos, este senhor não quer que a Península Ibérica se separe da Europa, aquilo que ele pretende é arrastar, levar a Europa para o sul, o que seria uma transformação geológica tremenda, quer dizer, toda a Europa deslocando-se em direcção, não já só a Península Ibérica mas toda a Europa deslocando-se para o sul. Claro que isto tem que ver, já se sabe, com a velha questão norte sul, a velha questão colonizadores colonizados, a velha questão exploradores explorados, enfim, a dicotomia por um lado e a antinomia por outro lado norte sul, tudo isso, com tudo o que leva de conceitos de supremacia rácica, de domínio económico, de, digamos, imperialismo. Tudo isso, aquilo que está implícito no livro, ou pelo menos para um leitor que o leia assim, pode ser lido de distintas formas, claro está. É que o autor gostaria que a Europa deixasse de ser aquilo que sempre foi para tornar-se, sem deixar de ser aquilo que foi, porque as tradições pesam, a cultura pesa, a história pesa, mas para converter-se de alguma forma numa entidade moral que acrescentasse a tudo aquilo que ela tem sido uma dimensão ética, que até agora não teve, e que fosse para o mundo o elemento de transformação de valores e de reconhecimento de direitos de povos que até hoje, praticamente até hoje, e com certeza também no futuro, de uma forma ou outra, têm sido e vão continuar a ser explorados. A Jangada de Pedra foi, na minha cabeça, uma espécie de proposta para a formação de uma nova bacia cultural que não seria já, porque essa já cumpriu o seu papel histórico, a bacia cultural mediterrânica, mas sim aquilo que seria a bacia cultural, que não tem forma de bacia, como é o caso, ao contrário do que acontece com o Mediterrâneo, que praticamente é um grande lago, mas que seria de uma certa forma isso a que os espanhóis chamam uma cuenca cultural do Atlântico Sul. Quer dizer que entre a América do Sul e a África, a Península Ibérica estaria aí, tornada ilha, e mesmo por ser uma ilha, cercada de mar por todos os lados, podendo comunicar com tudo o que está fora dela. É outra vez uma utopia, claro, nós estamos um pouco cansados de falar de utopias, enfim, e o livro ficou aí e portanto do romance histórico também não tem nada.»

Legenda: cartaz do filme de George Suarez.

2 comentários:

Seve disse...

Curiosamente um dos poucos livros do Saramago que ainda não li, porque sempre tive algum "receio" ;(quem lê percebe este meu "receio").

Sammy, o paquete disse...

Agora, por causa dos Sublinhados, voltei a pegar no livro e andei às voltas pelas páginas e concluí que nunca li este livro como deve ser!...
Situações que, passados tantos anos, não sei como puderam acontecer... mas aconteceram.
O que agora apanhei, leva-me a que tenho de o voltar a ler... com olhos de ler.
Há para ali uma pequena encosta com livros, uns a ler, outros reler, que por ali vão permanecer e ala que se faz tarde, acima de tudo porque Saramago merece tudo!