sábado, 31 de dezembro de 2022

DOS REBOTALHOS E COISAS ASSIM...


 Os Estados Unidos e a União Europeia são as principais fontes de assistência financeira à Ucrânia. Estima-se que esse apoio ronde os cem mil milhões de euros o que corresponde a menos de metade dos gastos que o Catar teve para organizar o Campeonato do Mundo de Futebol.

1.

«Tornámo-nos uma sociedade de surdos», palavras de José Tolentino de Mendonça na homilia de Natal no Funchal.

2.

Dinheiro, almoços em bons restaurantes, electrodomésticos, viagens e até um presunto de Montalegre. Eram estes os subornos mais frequentes entregues a 13 funcionários da Autoridade Tributária, que estão a ser julgados em Lisboa, por praticarem actos que beneficiavam particulares necessitados de resolver situações junto da administração fiscal”, segundo a acusação do Ministério Público.

Entre estes funcionários há técnicos, chefes, inspectores e um advogado que exercia as funções de jurista especializado no Centro de Estudos Fiscais e Aduaneiros

3.

Devido ao custo da habitação quase 60 mil pessoas foram forçadas a deixar Lisboa nos últimos três anos;

4.

«No dia 12 Dezembro de 2020, no Twitter, André Ventura informou o país do seguinte: “Deus confiou-me a difícil mas honrosa missão de transformar Portugal.” O Criador, no âmbito da sua actividade de administrador do universo, teria dedicado algum do seu tempo a pensar omniscientemente em Portugal e, após observação cuidada, concluíra que o país precisava de uma transformação e que a pessoa mais bem colocada para a operar seria aquele comentador de futebol que discutia foras-de-jogo com Aníbal Pinto na CMTV. É este mesmo candidato, cuja carreira é patrocinada por um ser omnipotente, que se queixa de não ser convidado por um palhaço para um programa de entretenimento. Talvez a ERC devesse recomendar a Nosso Senhor a necessidade de compensar os outros candidatos. Se necessário, evidentemente.»

 Ricardo Araújo Pereira

5.

«Marilyn Monroe. Em Quanto Mais Quente Melhor, obra-prima de Billy Wilder, Marilyn faz do seu corpo o que quer, mostra e tapa, insinua e provoca; metido num apertado vestido preto e em cima de uns saltos altos, o posterior dela faz resfolegar um comboio no mais hiperbólico jacto de vapor que o cinema já viu. Quem está na sala de cinema – aconteceu-me, aconteceu-me! – levanta-se e grita: “Pára, pára, mais não, mais não!” São gritos desvairados e deslumbrados. E chega o momento em que Marilyn beija Tony Curtis. Eis o que quero dizer: Marilyn beija de chulipa. Tony Curtis é, no filme, um milionário, e os beijos de Marylin são sumptuários, de calcanhar. Ela beija já e só o prazer de beijar e Tony Curtis confessa que sente os dedos dos pés como se estivessem num barbecue a fogo lento.»

Manuel S. Fonseca em A Página Negra

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


 Será o último Sublinhado Saramaguiano deste ano de 2022 em que se comemorou o centenário do nascimento de José Saramago.

Estamos com O Ano da Morte de Ricardo Reis. Com as últimas horas do último dia do ano de 1938, Ricardo Reis, talvez pensando como há-de cativar Lídia, divaga entre boas acções que de imediato serei esquecidas nos primeiros dias do novo ano.

«Hoje é o último dia do ano. Em todo o mundo que este calendário rege andam as pessoas entretidas a debater consigo mesmas as boas acções que tencionam praticar no ano que entra, jurando que vão ser rectas, justas e equânimes, que da sua emendada boca não voltará a sair uma palavra má, uma mentira, uma insídia, ainda que as merecesse o inimigo, claro que é das pessoas vulgares que estamos falando, as outras, as de excepção, as incomuns, regulam-se por razões suas próprias para serem e fazerem o contrário sempre que lhes apeteça ou aproveite, essas são as que não se deixam iludir, chegam a rir-se de nós e das boas intenções que mostramos, mas, enfim, vamos aprendendo com a experiência, logo nos primeiros dias de Janeiro teremos esquecido metade do que havíamos prometido, e, tendo esquecido tanto, não há realmente motivo para cumprir o resto, é como um castelo de cartas, se já lhe faltam as obras superiores, melhor é que caia tudo e se confundam os naipes.

(Página 59).

UMA PEQUENINA LUZ

Uma pequenina luz bruxuleante

 não na distância brilhando no extremo da estrada

 aqui no meio de nós e a multidão em volta

 une toute petite lumière

 just a little light

 una picolla… em todas as línguas do mundo

 uma pequena luz bruxuleante

 brilhando incerta mas brilhando

 aqui no meio de nós

 entre o bafo quente da multidão

 a ventania dos cerros e a brisa dos mares

 e o sopro azedo dos que a não vêem

 só a adivinham e raivosamente assopram.

 Uma pequena luz

 que vacila exacta

 que bruxuleia firme

 que não ilumina apenas brilha.

 Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.

 Muda como a exactidão como a firmeza

 como a justiça.

 Brilhando indeflectível.

 Silenciosa não crepita

 não consome não custa dinheiro.

 Não é ela que custa dinheiro.

 Não aquece também os que de frio se juntam.

 Não ilumina também os rostos que se curvam.

 Apenas brilha bruxuleia ondeia

 indefectível próxima dourada.

 Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.

 Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.

 Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.

 Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.

 Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:

 brilha.

 Uma pequenina luz bruxuleante e muda

 como a exactidão como a firmeza

 como a justiça.

 Apenas como elas.

 Mas brilha.

 Não na distância. Aqui

 no meio de nós.

 Brilha.

 

Jorge de Sena

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

POSTAIS SEM SELO

Toda agente tem um livro dentro de si, que é exactamente onde deveria, acho que, na maioria dos casos, ficar.

Christopher Hitchens

O OUTRO LADO DAS CAPAS


O Germano é um velho amigo, puro transmontano de uma aldeia perto de Montalegre. Foi graças a ele que comi as melhores alheiras que trinquei, eram feitas por uma tia que, por caseiras que eram, não originavam grandes quantidades mas as pouquíssimas que  chegavam  a Lisboa originavam um longo jantar com muitas hortaliças e chouriças diversas, e arrastadas conversas.

Em muitas dessas conversas falava-se de chegas de bois e o Germano dissertava sobre esse tão velho costume das gentes para lá do Marão.

Um dia, relendo os Diários de Miguel Torga, no seu volume IX, encontrei este texto, datado de Montalegre, 11 de Janeiro de 1970:

«Avisado por um amigo de que havia hoje cá na terra uma chega de toiros, meti-me a caminho debaixo dum temporal desfeito, e tanto teimei com a chuva, o vento e o granizo, que consegui chegar a horas de assistir ao combate. E valeu a pena. Se há em Portugal meia dúzia de espectáculos que merecem ser vistos, este é um deles. Primeiro, as bichezas, depois de nove voltas propiciatórias à capela do orago e da sanção da bruxa, a sair dos respectivos lugarejos, rodeados pela juventude dos dois sexos, enquanto o sino toca a Senhor fora e o mulherio idoso reza implorativamente aos pés do Santíssimo; a seguir, a chegada dos cortejos ao Toural da vila, as cerimónias preliminares do encontro – vistoria rigorosa dos animais (não tragam eles pontas de aço incrustadas nos galhos), a escolha do piso, dar o que pode, no esforço hercúleo de não perder um palmo de terreno, ou ganhá-lo apenas cedido. Turra que dura eternidades de emoção, e só termina quando uma das bisarmas fraqueja, recua, e acaba por fugir.

Não é, contudo, a luta gigantesca, apesar de empolgante, o que mais diz ao espectador forasteiro. É o halo humano que a envolve, os milénios de ancestralidade que ela faz vir à tona da assistência. Símbolo de virilidade e fecundidade, o boi é na região o alfa e o ómega do quotidiano. Cada povoado revê-se nele como num deus. Vitorioso, cobrem-no de flores; derrotado, abatem-no impiedosamente. Quando há minutos a turra acabou, depois de a viver numa tensão de que a palidez de um padre a meu lado era a síntese, toda a falange que torcia pelo vencido parecia capada.»

No Natal de 2013  o Germano ofereceu-me esta Antologia para que eu percebesse melhor o que é isso das chegas de bois. 

São antologiados os seguintes autores:

José Viale Moutinho, Manuel Lopes Gonçalves Garcia, Barroso da Fonte,  Frei Damian E. Neira, Miguel Torga, Mário Ventura Henriques, António Lourenço Fontes, Bento da Cruz, Carvalho de Moura, Paula Bordalo Lema, Ferreira de Castro, João Martins Rodrigues, Dias Vieira, Artur Maria Afonso, Carvalho de Moura, Manuel F. Ramos, Júlio Montalvão Machado, Fernando Moura, José Dias Baptista Sant’anna Dionísio, António Cabral.

«Em vésperas de chega, os touros contendores são o fulcro das atenções por parte das aldeias a que pertencem. Os homens guardam-nos dia e noite, para evitar que sejam alvos de qualquer atentado – que tanto pode ser físico como incorpóreo. Nunca se sabe que mezinhas podem ser dadas a um animal, a fim de o incapacitarem para a luta que se avizinha.» (Mário Ventura Henriques)

«Um barrosão diria assim: um boi, para ser boi, há-de ter duas qualidades – pintar bem e turrar melhor.

Por «pintar bem», entende-se: crias fortes e bonitas.

Por «turrar melhor»: campeão de chegas.

Se não puder reunir os dois quesitos, ao menos que seja um campeão orgulho da comunidade.» (Bento da Cruz).           

OLHAR AS CAPAS


 As Chegas de Bois

Antologia

Âncora Editora, Lisboa, Outubro de 2005

 

Se os deuses assim fossem poderosos

Rompiam o nevoeiro com os seus cornos

E os apóstolos de armas em punho assistiriam

Às batalhas de todos os tempo.

 

Se todas as gentes das aldeias tivessem

Em vez de arados e enxadas a raiva plena

Aos medos no Outono e no Inverno anjos

De lama guardariam as feiras e as chegas.


Os bois em suas torres de sinos de ouro

Seriam as aves últimas de Barrosos

Por aqui bestas e homens aguilhoam

O instante supremo para que um tombe.


Encontram-se nas sombras remexem-se

Rompem as queixas mostram-se os dentes

Os de cada povo gritam pelos campos

Abrem-se no rosto os próprios aguilhões.


Se os deuses quisessem fazer espantos

Asas teriam os bois coiro resplandecente

E decerto connosco estariam aqueles

Que negam o próprio coração e as vozes.


José Viale Moutinho    

ELEGIA 1969

                                                 Segundo Carlos Drummond de Andrade

Arrastas a escravidão até à velhice

e nada que faças te vale de muito.

Dia após dia passas pelos mesmos gestos,

Tremes na cama, tens fome, desejas uma mulher.

 

Heróis representando vidas de sacrifício e obediência

enchem os parques por onde caminhas.

À noite, no nevoeiro, abrem as umbrelas de bronze

ou então refugiam-se nos vestíbulos vazios dos cinemas.

 

Amas a noite pelo seu poder de destruição,

mas enquanto dormes, os teus problemas irão morrer.

Acordar só prova a existência da Grande Máquina

e a luz árdua cai no teus ombros.

 

Caminhas entre os mortos e falas

de tempos por vir a assuntos do espírito.

A literatura fez-te desperdiçar as melhores horas de amor.

Fins-de-semana perdidos, a limpar a casa.

 

De pronto confessas o teu fracasso e adias

A alegria colectiva para o próximo século. Aceitas

A chuva, a guerra, o desemprego, e a distribuição injusta da riqueza

Porque não podes, sozinho rebentar, rebentar a ilha de Manhattan.

 

Mark Strand 

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

ENGODO

A poesia não pode tratar de mim,
nem eu da poesia.
Estou só, o poema está só,
o resto é dos vermes.
Estava à beira das ruas onde moram as palavras,
livros, cartas, notícias,
e esperava.
Sempre esperei.

As palavras, em formas claras ou escuras,
transformaram-se em alguém escuro ou mais claro.
Poemas passam por mim
e reconheciam-se como coisa.
Via-o e via-me.

Esta escravidão não tem fim.
Esquadrões de poemas procuram os seus poetas.
Vão errando sem comando pelo grande distrito das palavras
e esperam o engodo da sua forma
feita, perfeita, fechada,
concentrada e
intangível.

Cees Nooteboom

(Tradução August Willelmsen e Egito Gonçalves).

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

POSTAIS SEM SELO


 esqueço-me de tudo, por isso escrevo. longe do terror ao sismo inesperado das estrelas, escrevo com a certeza de que tudo o que escrevo se apagará do papel no momento da minha morte.

 Al Berto em O Medo 

Legenda: a máquina de escrever de Carlos de Oliveira.

NOTÍCIAS DO CIRCO

 

Governo de maioria absoluta. TAP. Fernando Medina. Pedro Nuno Santos. Alexandra Reis. Uma confusão dita do outro mundo.

Ontem, quase ao bater da meia-noite, Medina comunicou a Alexandra Reis, recente secretária de estado do Tesouro, para pedir a demissão.

Assim aconteceu.

Medina explica:

«Tomei esta decisão no sentido de preservar a autoridade política do Ministério das Finanças num momento particularmente sensível na vida de milhões de portugueses. No momento em que enfrentamos importantes exigências e desafios, considero essencial que o Ministério das Finanças permaneça um referencial de estabilidade, de autoridade e de confiança dos cidadãos. São valores fundamentais à boa condução da política económica e financeira e à direção do setor empresarial do Estado».

O ministro termina a nota agradecendo a Alexandra Reis, «detentora de um curriculum profissional de enorme mérito e qualidade, todo o trabalho desenvolvido, reconhecendo a integridade e correção com que neste período pessoalmente difícil assegurou a defesa do interesse público».

Mas o imbróglio político não termina com este gesto ministerial.

Continua por saber se Alexandra Reis foi demitida da TAP, ou se pediu escusa de continuar como gestora.

No meio encontram-se atravessados 500 mil euros pagos a Alexandra por ser demitida ou por ter pedido escusa.

A situação veio colocar a céu aberto o chocante contraste entre as indemnizações obscenas pagas a gestores da TAP e aquelas que são pagas aos trabalhadores.

Entretanto, na segunda-feira, Fernando Medina assinou o cheque que permite a entrada de 980 milhões de euros nos cofres da TAP.

NÃO FUGIR...

                                     ao Nuno

Não fugir. Suster o peso da hora
Sem palavras minhas e sem os sonhos,
Fáceis, e sem as outras falsidades.
Numa espécie de morte mais terrível
Ser de mim todo despojado, ser
Abandonado aos pés como um vestido.
Sem pressa atravessar a asfixia.
Não vergar. Suster o peso da hora
Até soltar sua canção intacta.

 

Cristovam Pavia

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

NOTÍCIAS DO CIRCO

Depois do caso daquele sorridente rapaz de Caminha que de autarca passou a braço direito de António Costa, sem ninguém saber, no governo, dos disparates que andou, no risonho Minho, a fazer, outro caso ou casinho, tanto faz, nos bate à porta em final de ano: o caso da secretária de estado do Tesouro, Alexandra Reis, que saiu do conselho directivo da TAP com indemnização de peso, passou pela NAV e acaba, qual passe de mágica, no governo.

Pedaço de prosa do editorial do Público:

«Se este é o cenário traçado pelo Governo de António Costa, não custa perceber que se tenha tornado difícil para os portugueses engolir, entre duas rabanadas, a indemnização de 500 mil euros, atribuída a uma administradora que quatro meses mais tarde encontrou emprego numa empresa pública, nomeada pelo mesmo ministro que tutelava a TAP, e que hoje é secretária de Estado do Tesouro.»

Aguardam-se as cenas dos próximos capítulos.

ANTÓNIO MEGA FERREIRA (1949-2022)


Morreu António Mega Ferreira.

 Um homem de Lisboa, um homem de cultura, com o Sport Lisboa e Benfica como o seu primeiro e grande amor, uma enorme caligrafia de prazeres onde pontificavam gravatas, relógios, filmes, restaurantes, música clássica, livros, certos lugares, «até morrer, todos os anos hei de ir a Itália».

Fazedor de inúmeros projectos culturais, Expo98, por exemplo, sem qualquer interesse pela posteridade, no fundo apenas queria que o reconhecessem, unicamente, como um escritor e ao dizê-lo certamente lembrava um verso de Jorge Luís Borges que tanto admirava:

«Em breve saberei quem sou». 

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

O QU'É VAI NO PIOLHO?


João Bénard da Costa, abria assim uma das suas crónicas:

«Nos nossos cinemas, ou no que resta dos nossos cinemas, se me quiser fazer entender.»

Os velhos cinemas estão quase todos liquidados, ou em vias de…

Por aqueles tempos, nascia-se em casa.

Na rua onde nasci, não havia qualquer sala de cinema mas, em redor, havia uma enormidade de cinemas.

Mentalmente percorro essas ruas, sigo em direcção à Graça e encontro o Cine-Oriente, o Royal, junto à Morais Soares o Max, o Imperial, na Almirante Reis o Cinema Império, o Lys, o Rex, mais abaixo o Salão Lisboa, e se subir até à Duque de Ávila encontro o Avis.

Desapareceram quase todos, outros mantêm o espaço, mas viraram diversos, quiçá estranhos, locais de consumo.

O cinema é um mundo de afectos que provoca uma grande e inolvidável memória e a cada um o seu Cinema Paraíso, a sua última sessão.

Maria do Rosário Pedreira escreveu no jornal digital «Mensagem de Lisboa», uma bonita e nostálgica,  crónica «O Filme de Lisboa» sobre os velhos cinemas de Lisboa, a maior para já desaparecidos.

E dedicou a crónica a Lauro António «que escreveu neste mesmo jornal sobre cinema».

                                      Aqui era o Cinema Lys, agora é um edifício de salas de escritórios abandonadas.

«Pertenço a  geração que perdeu amigos e irmãos para as drogas duras e os acidentes de moto; mas, no meu caso, a droga de juventude era o cinema.

Não só não perdia um ciclo na Cinemateca ou na Gulbenkian – onde papei todo o Visconti, o Bresson, o Hitchcock, o Jacques Demy… e vi filmes que nunca mais esqueci (como Freaks, de Tod Browning) –, mas também frequentava as salas de cinema nunca menos de três vezes por semana.

Acho que comecei, levada pela mão da minha mãe, pelo Bambi e a Música no Coração, ambos no Tivoli que, apesar de tudo, se mantém como sala de espectáculos e onde a programação foi oscilando entre as grandes produções, como E Tudo o Vento Levou ou A Torre do Inferno, e o cinema de autor, como Profissão Repórter, de Antonioni.

Mas nem todas as grandes salas tiveram a mesma sorte: o Monumental, onde me deliciei com My Fair Lady ou O Grande Ditador e me impressionei mais tarde com Apocalipse Now (e onde frequentava, com o meu irmão, o Satélite para me maravilhar com o Bergman a preto e branco), foi deitado abaixo; o Eden, onde comi a pastelada d’O Exorcista maquilhada e de saltos porque o filme era para maiores de 18 anos e eu só tinha catorze, é hoje um hotel; o Condes, que passava as comédias de Louis de Funès, deu lugar ao Hard Rock Café; e – pior do que tudo – o Império (que tinha uma sala estúdio onde conheci Polanski através de A Semente do Diabo) tornou-se templo da Igreja Universal do Reino de Deus!

Sobrou-nos, vá lá, o São Jorge, no qual assisti a muitas obras-primas inesquecíveis – Doutor JivagoA Amante do Tenente FrancêsA Escolha de SofiaA Laranja MecânicaÁfrica Minha… – e me lembro de ter visto a primeira parte de 1900, após o que jantei um combinado no Galeto para apanhar, na sessão da noite do Mundial, a segunda parte.

Já não temos, infelizmente, o Mundial e, só na zona das Avenidas Novas, quase todos os cinemas que desapareceram, a começar pelo Avis, onde, aos treze anos, fui com a escola ver o dramalhão Simplesmente Maria, que era a maneira que as freiras tinham de nos alertar para os perigos de uma gravidez não desejada.

Salvou-se o Nimas de Chove em Santiago ou Oficial e Cavalheiro, mas evaporaram-se o Berna, de Jesus Cristo Superstar ou ET; o Apolo 70 de Barry Lindon, O Homem Elefante ou Os Marginais; o Sétima Arte, debaixo da ponte do comboio, onde vi Starman; o Estúdio 222, que passava cinema português e onde ouvi Victoria Abril falar com a voz de Manuela Maria em Silvestre; o Estúdio 444, onde recordo sobretudo Doutor Estranhoamor; a sala do Centro Comercial City, perto do Imaviz, onde me estreei no cinema erótico com O Império dos Sentidos numa sessão da meia-noite; e, já no Campo Grande, o Caleidoscópio, do qual recordarei para sempre Chinatown e, claro, Peter Bogdanovich e a sua Última Sessão.

                                                                 Aqui era o Cinema Royal, agora é um dos supermercados Pingo Doce

Houve demasiadas últimas sessões também para os lados de Alvalade: desde logo, perdemos o luxuosíssimo cinema Star na Guerra Junqueiro, onde ainda oiço o Bolero de Ravel em Les Uns et les Autres; mas também sumiram as cadeiras que baixavam com o nosso peso no Londres (hoje loja chinesa), que passava Buñuel, Truffaut, Rohmer e muitos outros; morreram os Alfa (onde conheci, por exemplo, Blue Velvet); as salas do Centro Comercial de Alvalade (O Jogo Fatal, de David Mamet, ainda é um dos meus filmes favoritos); o ACSantos, escondido na Avenida da Igreja (Frances foi uma revelação); o Vox/King, de tantos filmes e também de Cyrano; o Roma (lembram-se de O Passageiro da Chuva?), que hoje é a sala da Assembeia Municipal e, claro, o inesquecível Quarteto, onde se andava freneticamente de sala para sala atrás de coisas tão diferentes como QuerelleCerromaiorO Fantasma da ÓperaVoando sobre Um Ninho de Cucos, Almodóvar, Woody Allen, Tanner, Tarkovski, Wim Wenders…

Mesmo o cinema Alvalade desmaiou por mais de uma década (foi nele que, em adolescente, me despedi de uns amigos que foram viver para o estrangeiro com um filme chamado Friends), antes de ressuscitar há uns anos, dividido em muitos e com novo nome (City).

No resto da cidade, a mesma escuridão: o Castil (onde fui ver Amarcord às escondidas da minha mãe), o Fonte Nova, o Gemini, o Pathé, o Roxy, o Terminal (que ficava na estação do Rossio ao lado de umas lojas manhosas) e ainda outros onde nunca cheguei a pôr os pés, como o Cinebolso, o Paris, o Jardim Cinema ou o Europa, estão reduzidos a memórias de uma cidade que já foi de cinéfilos e salas cheias.

Ficaram apenas aqueles espaços que cheiram a pipoca e, aqui e ali, um milagre de teimosia.

A minha vida tem agora mais livros e menos filmes. Porque será?»

Legenda: pintura de John French Sloan

domingo, 25 de dezembro de 2022

NATAL

– Que tens tu?

– Nada. É Natal.


Alexandre o’Neill em Anos 70 Poemas Dispersos

sábado, 24 de dezembro de 2022

O CORREIO DA NOITE


 Num livrinho intitulado «As Estações da Vida» de Agustina Bessa-Luís, encontramos estas palavras:

«O comboio sempre me pareceu ter qulauqr coisa de profético. Abria-se a portinhola duma carruagem e imediatamente se abria na imaginação um processo romanesco. Tratávamos de divisar os passageiros e explorar a réstea de conforto que podíamos partilhar. Era o prelúdio duma viagem que podia ser o primeiro capítulo duma história.»

Na Biblioteca da Casa há uma antologia de contos de Natal, publicado em 1978.

Nele se encontram tres contos de Agustina Bessa Luís.  Escolhemos «O Correio da Noite», uma história maravilhosa.

 «Em 1934, passámos a véspera de Natal num velho vagão onde viajavam três cães perdigueiros, um hortelão de frades e uma criada de servir, a Rata, que estreava uma peineta nova, dessas que havia com aplicações de turquesa fingida. Não havia transportes e, pouco antes da meia-noite, meu pai lembrou-se de visitar a família, que não era numerosa e por isso lhe dava pena deixá-la, à ceia, na vasta mesa toda mordida por golpes de canivete que até parecia obra de talha. Sujeitámo-nos pois àquela viagem no correio da noite que, além do mais, ia cheio até aos tejadilhos. Alguns preferiram o furgão; levava caixotes de passas de Alicante e uma urna para um morto, coberta com um pano encerado, como se fosse destinada aos abismos do oceano. A Rata persignava-se e rezava umas estropiadas letanias que ela sabia. O hortelão, o Miguel Cunha, era da minha terra – o maior mentiroso, o mais famoso gastador de petas lá do sítio. Nunca vi tal arte feiticeira, tal cordura bem-falante em tecer fantasias. Aos poucos, íamos com ele na legenda dos assuntos e, se um céptico nos cortasse o passo, éramos como mastins sobre a sua lucidez idiota. Porque ao pé do Miguel Cunha, tão generoso a contar-nos novelas, casos tortos, extraordinárias missões do bicho homem, todos os outros eram tolos e leigos no sentimento de urdir a vida.

O comboio, na noite clara, soltava fagulhas verdes e douradas. Víamos o rasto delas pelas portas que iam meio abertas. Eu tinha nesse ano umas luvas de lã de punhos altos, de alpinista, e os dedos estavam vidrados pelo frio.

- Ah, lembra-me isto uma passagem que se deu em Argabiça – disse Miguel, na sua vozinha refilona e alegre. Eu pensei para mim: Temos espanholada. E a Rata interrompeu o seu piedoso discurso de Electra sobre a urna, para se arrumar comodamente entre as caixas de passas. Era uma rapariga a jeito de escultura Maya – estou a vê-la, um ar maciço, fecundo e antigo; os brincos de ouro tinham crostas de cera verde. – Os de Argabiça tinham uma fábrica de urnas – continuou Miguel. – E eram famosos por isso. Mandavam-nas para o Brasil, a direito pelo mar dentro, atadas com sogas umas às outras. E levavam seis dias e poucas horas a lá chegar. Seguiam as correntes; não saltavam as ondas, iam a par delas. Isto poupava-lhes muitas léguas. Eu andava nas podas, que não sou de Argabiça, mas um migalho mais acima. Dois moços chegaram-se a mim e desafiaram-me: Queres tu vir ao Pará? – Quero – disse eu. Pendurei a tesoura no cinto e meti-me com eles nos caixões, que era a nossa maneira de embarcar. O mar estava lesto, e o coração do mar batia como um sino. Ouvíamos cantar as sereias, e os filhos delas corriam no fio do cachão sem se afundarem. Chegámos ao Brasil aí pela noite do Ano Bom; a praia estava cheia de velinhas que alumiavam o mar, e as pretas traziam flores e atiravam-nas à água.

- Cala-te, fardeleiro, que te não posso ouvir! – disse a Rata. Desatou com fúria o nó do cabelo e voltou a torcê-lo.

- Eu morra se não falo verdade! – Os olhinhos amarelos do Miguel Cunha, a sua voz cantarina, o cabelo turdilho que ele já tinha, a pequena figura rabina, tudo se me pregou na memória. E o tambalear do vagão nos trilhos naquela noite de alto céu sem bruma.

- Enredas bem os teus enredos – disse meu pai, entre maravilhado e distraído.

- Que falo certo, e isso não me pesa… Tenho como testemunha um cafezal que podei com a minha tesoura antes de vir embora. Ainda lá está o cafezal. E no último pé botei-lhe duas letras, que foram um A e um B. Não era Ano Bom, não era nada disso. Era Adeus Brasil. Assim a luz do sol me alumie, como não foi aparença.

- Eu fio-me – tornou a Rata, moída de ronha, cega. – Olha que pecas! Olha que pecas!

Eu tive de repente medo. Quem viajava comigo naquele escuro lugar? Viam-se os pinheiros e os postes desenhados no claro da lua. Os fechos de cobre da urna tremiam levemente. Àquela hora, em casa, já a ceia tinha sido servida; e os gatos mediam a própria sombra, com elásticos passos, depois dum banquete de espinhas. Não havia presépio; só um Cristo de barro dentro dum fanal, com cravos nas mãos, pintados de purpurina. Eu não recebia presentes – era demasiado pueril e até um pouco ridículo dar presentes a quem se ama. O amor não se comemora. E o Natal até era mais belo quando era obscuro e quase inesperado no decurso dos dias sem história. Perguntei lá em casa:

- O Miguel Cunha mente muito?

- Como uma cesta rota.

Abstive-me de perguntar se ele era um pecador. E toda a vida guardei aquela porfia de alma de ir ao Brasil, conhecer o cafezal onde ficaram gravadas as letras tabeliónicas desse noveleiro, que foi criado de convento e podador em Argabiça»

 

Legenda:  «Le Train dans la Neige», pintura de Claude Monet

LADAÍNHA DOS PRÓXIMOS NATAIS


 Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão-Ferreira de Cancioneiro de Natal em Obra Poética

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

POSTAIS SEM SELO


 «Os filósofos afirmam que isto há-de ser sempre assim: o mais nobre de entre eles, Jesus, cujo nascimento estamos exactamente celebrando, ameaçou-nos, numa palavra imortal, que “teríamos sempre pobres entre nós”. Tem-se procurado com revoluções sucessivas fazer falhar esta sinistra profecia – mas as revoluções passam e os pobres ficam.»

 Eça de Queiroz em Cartas de Inglaterra

NOTÍCIAS DO CIRCO

Luís Montenegro foi hoje ao Palácio de Belém – um palco apetecível porque, no fim da reunião, pode aproveitar-se os directos televisivos, gente sedenta de casos, casinhos, mexeriquices várias.

Terão Marcelo e Montenegro bebido chá de flor de laranjeira e broas castelares da Garrett?

Mas, realmente, que foi Montenegro fazer a Belém?

Aliviar a solidão de Marcelo, desejando-lhe «Boas Festas».

Fazer queixas do governo: a baixíssima taxa de execução dos fundos do PRR, a incapacidade de resolver problemas estruturais, não só na saúde, na educação, na criação de riqueza, na falta de respostas de António Costa ao que se passou com ex-governador do Banco de Portugal.

Lamentar a pressa que a bancada parlamentar do PS teve com a despenalização da eutanásia, quando seria necessário mais tempo para trabalhar o assunto.

Contudo, não fez qualquer referência à forte aposta que, esta semana, Marcelo fez ao lembrar ao PSD, ao país, na futura candidatura presidencial que poderá ser José Manuel Durão Barroso, agora que este vai deixar a cadeira da presidência da Goldman Sachs International, adaptando, a propósito, uma citação do Evangelho segundo São Mateus, parábola do banquete da boda: «muitos são chamados, mas poucos os escolhidos.

O OUTRO LADO DAS CAPAS


Amália terá sempre sido Amália mas, mera opinião pessoal, verdadeiramente terá começado quando pela proa lhe apareceu Alain Oulman.

António Variações dizia que todos tínhamos Amália na voz.

Jorge Calado num artigo no Expresso determinou que Amália «habita o panteão das grandes vozes do século XX, uma mulher inteligentemente bela.»

O meu pai, que não era um Amaliano, rendeu-se àquele extraordinário LP «Com Que Voz».

Este livro, publicado em Setembro de 2020, é imperdível.

Manuel da Fonseca, em 1973, conversou longamente com Amália, perto de 10 horas, e são pausas, silêncios, alguns enormes, divagações, risos, reflexões várias, provocações e… muitos cigarros e whiskis.

Pedro Castanheira, autor da transcrição e das notas, diz que no final do livro se pode concluir da enorme inteligência de Amália em que se pode notar que Amália se adaptou mais ao Manuel da Fonseca do que o Manuel da Fonseca se adaptou à Amália.

Rui VieiraNery, no prefácio do livro, realça a maneira como Amália consegue fazer um retrato da sua infância, numa dureza como nunca se tenha ouvido, lido, nos muitos depoimentos e entrevistas que Amália fez ao longo da sua vida.

O escritor e editor Manuel Alberto Valente, considera «Amália Nas Suas Palavras, um documento de enorme importância.»

OLHAR AS CAPAS



 

Amália Nas Suas Palavras

Amália Rodrigues e Manuel da Fonseca

Transcrição e Notas: Pedro Castanheira

Prefácio: Rui Vieira Nery

Edições Nelson de Matos/Porto Editora, Lisboa Setembro de 2020

 Amália – Eu comparo o Alentejo a uma música. Às vezes vêm-me falar da música do Doutor Jivago, que fez um sucesso no mundo inteiro. Bonita, mas não passa daqui. Não interessa nada.. Não vou daqui ali para a ouvir outra vez. E, de repente, há uma música árabe, que não tem melodia nenhuma, e sou capaz de estar dias e dias inteiros a ouvir aquilo.

Manuel da Fonseca – Você nunca ouviu o charruar do campo? A cantiga dos bois? Nunca ouviu? Ah!

Amália – Não. Já ouvi os alentejanos a cantar em coro, à noite, numa taberna.

Manuel da Fonseca – Por exemplo, nos trabalhos agrícolas, a cantar aos bois. Os bois parecem que andam parados, Os bois seguem o ritmo da cantiga.

Amália – Nunca ouvi. O Alentejo é isso. O Alentejo fala-me dessas coisas, mesmo sem eu as ter visto. É que eu sinto, no Alentejo, todo o ambiente. Só de ver o Alentejo, senti todo o ambiente. Parece que… Às vezes há homens que falam, na sua música e nos seus versos, de um país, como no caso de Dorival Caymmi. Nas cantigas que canta, eu vejo o Brasil.

Manuel da Fonseca – Pois.

Amália – Há terras… É engraçado: o Brasil é o contrário. Fala muito mais o Dorival Caymmi do Brasil do que o Brasil me fala.


uma chama não chama a mesma chama
á uma outra chama que se chama
em cada chama que chama pela chama
que a chama no chamar se incendeia

um nome não nome o mesmo nome
um outro nome nome que nomeia
em cada nome o meio pelo nome
que o nome no nome se incendeia

uma chama um nome a mesma chama
há um outro nome que se chama
em cada nome o chama pelo nome
que a chama no nome se incendeia

E.M. de Melo e Castro

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

POSTAIS SEM SELO


 O tempo pergunta ao tempo, quanto tempo o tempo tem. O tempo responde ao tempo que o tempo tem tanto tempo, quanto tempo o tempo tem...

 Ladainha infantil

 Legenda: fotografia Shorpy

OLHAR AS CAPAS


Um Sonho Americano

Norman Mailer

Tradução: H. Silva Letra

Capa: João da Câmara Leme

Colecção Contemporânea nº 107

Portugália Editora, Lisboa Setembro de 1968

Passara o último ano separando-me da minha mulher. Fôramos casados mioto ìntimamente, e com frequência muito infelizmente, durante oito anos, e nos últimos cinco procurei evacuar o meu exército expedicionário, aquela força de esperanças, necessidade total, simples desejo viril e dedicação que havia empregado nela. Era uma guerra perdida, e eu queria retirar-me, contar os mortos e buscar o amor noutra terra. Contudo, Deborah era uma grande fêmea, uma leoa de espécie. O rendimento incondicional era o seu único alimento.

AH, VENTUROSOS E VENTUROSAS

Ah, venturosos e venturosas
que não sabem cantar. Para eles -
o derramar de lágrimas! Delícia -
derrama-se a dor como aguaceiro!

Para que trema algo sob a pedra.
Para mim - vocação a chicote -
no meio dos cantos fúnebres
manda o dever - cantar.

Porque David cantou reclinado
sobre o amigo que cortaram ao meio!
Se Orfeu não descesse ao Hades
mas mandasse lá a voz,

se apenas mandasse a voz às trevas
e se quedasse inútil à entrada,
Eurídice sairia pela voz
como por uma corda...

Por uma corda e para a luz,
sem regresso e às cegas
porque, se foi dada a voz,
poeta, foi-te tirado o resto.

Marina Tsvetávena

Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra

Em Rosa do Mundo

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

POSTAIS SEM SELO


«Aqui jaz Rafael, que enquanto vivo a natureza temeu por ele ser vencida: mas que agora morto a natureza teme morrer com ele.»

Epitáfio escrito por Pietro Bembo e que se encontra no túmulo do pintor Rafael.

Tradução de  José Tolentino Mendonça.


A FORÇA DA TERRA MOLHADA


Às 21,48 horas, apresentou-se o General Inverno.

O solstício de Inverno assinala o dia mais curto do ano.

A partir de agora, devagarinho, muito devagarinho mesmo, os dias vão-se tornando maiores e em cada dia que passa, ficamos a aguardar a Primavera.
Tal como escreveu o poeta inglês Percy Bysshe Shelley:

Se o inverno chegou, a Primavera não estará distante.

Ou como escreveu Marta Cristina Araújo:

…finda o Outono, a chuva é próxima. A terra só tem força quando está molhada. 

QUOTIDIANOS


 

Títulos recentes de jornais.

Perguntaram um dia ao escritor Ernest Hemingway se acreditava em Deus.

«Às vezes, à noite, no escuro.»

O GOSTO DE PALEAR


«Do que eu gosto é de paleio… Passei a primeira parte da minha vida nos cafés a palear, fornecendo matéria para alguns camaradas e ouvintes escreverem o que eu dizia. Se tivesse continuado em Portugal acho que não tinha escrito nada. E se tivesse nascido milionário seria pior que o Mandarim do Eça…»

Eduardo Lourenço 

EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA

Há certos versos - às vezes poemas inteiros -

que eu próprio não sei o que querem dizer. O que ignoro

retém-me ainda. E tu, tu tens razão em interrogar. Não interrogues.

Já te disse que não sei.

                                         Duas luzes paralelas

vindo do mesmo centro. O ruído da água

que cai, no inverno, da goteira a transbordar

ou o ruído de uma gota de água caindo

de uma rosa no jardim, regado há pouco,

devagar, devagarinho, uma tarde de primavera,

como o soluço de um pássaro. Não sei que quer dizer este ruído; contudo aceito-o.

As coisas que sei explico-tas,

sem negligência.

Mas as outras também acrescentam a nossa vida.

Eu olhava

o seu joelho dobrado, como ela dormia,

levantando o lençol -

não era apenas amor. Este ângulo

era o cume da ternura, e o cheiro

do lençol, a lavado e a primavera, completava

este inexplicável, que eu procurei,

em vão ainda, explicar-te.

 

Yannis Ritsos

Tradução de Eugénio de Andrade

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

POSTAIS SEM SELO


 Em Gal, a emissão da voz era já música. E isso fazia com que o espírito dela expressasse subtilezas, asperezas, doçuras de modo espontâneo.

Caetano Veloso

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


 Joaquim Vieira – histórias antigas - não gosta de José Saramago, mas acenaram-lhe (Novembro de 2018) para escrever um livro sobre o autor e não hesitou.

Chama-se o livro «José Saramago: Rota de Vida».

No livro existem largas páginas dedicadas ao facto de José Saramago gostar de mulheres. Há mesmo um capítulo, o 6º, com as suas 30 páginas, que Vieira não resistiu à tentação de titular:  «O Pinga-Amor».

 Em 1977, François Truffaut realizou L'Homme qui aimait les femmes.

 É do filme que me lembro quando leio o rol de mulheres que andaram com, por, Saramago, mulheres por quem mostrou amor, simpatia ou quaisquer rituais de sedução.

 Só ele saberia dizer o porquê, se a tanto achasse útil ou necessário.

Se quiséssemos seguir a maledicência  de Joaquim Vieira, e de quem, sobre as mulheres de Saramago pensa os mesmos disparates que Vieira, poderíamos ir à infância/adolescência de Saramago para ficarmos a saber como, provavelmente, tudo começou.

O sublinhado de hoje está na página 42 de  As Pequenas Memórias:

«Quanto à Domitília, fomos apanhados, um dia Quanto à Domitília, fomos apanhados, um dia, ela e eu, metidos na mesma cama, a brincar ao que brincam os noivos, activos, curiosos de tudo quanto no corpo existe para ser tocado, penetrado e remexido. Pergunto-me que idade teria nessa altura e creio que andaria pelos onze anos ou talvez um pouco menos (na verdade, é-me impossível precisar, pois morámos por duas vezes na Rua Carrilho Videira, na mesma casa). Os atrevidos (vá lá a saber-se qual de nós teve a ideia, ainda que o mais certo é que a iniciativa tenha partido de mim) apanharam umas palmadas no rabo, creio recordar que bastante pró-forma, sem demasia da força. Não duvido de que as três mulheres da casa, incluindo a minha mãe, se tivessem rido depois umas com as outras, às escondidas dos precoces pecadores que não tinham podido aguentar a longa espera do tempo próprio para tão íntimos descobrimentos. Lembro-me de estar na varanda das traseiras (um quinto andar altíssimo), de cócoras, com a cara metida entre os ferros, a chorar, enquanto a Domitília, na outra ponta, me acompanhava nas lágrimas. Mas não nos ficou de emenda. Uns anos depois, já eu morava no número 11 da Rua Padre Sena Freitas, ela foi visitar a tia Conceição, e o caso é que não havia ali tia nem tio, nem meus pais estavam em casa, graças ao que tivemos tempo de sobra para acercamentos e investigações que, embora não chegando a vias de facto, deixaram inapagáveis lembranças a um e a outro, ou pelo menos a mim, que ainda daqui a estou a ver, nua da cintura para baixo.»

 

Legenda: imagem colorida por Aida Santos