domingo, 16 de março de 2025

OLHAR AS CAPAS


 O Mandarim

Eça de Queiroz

Com um Prefácio, em francês, do Autor

Livaria Chardron, Porto 1907

Eu chamo-me Theodoro – e fui amanuense do Ministerio do Reino.

N’esse tempo vivia eu à travessa da Conceição n.º106, na casa d’hospedes da D. Augusta, a esplendida D. Augusta, viuva do major Marques. Tinha dosi companheiros: o Cabrita, empregado na Administração do bairro central, esguio e amarello como uma tocha d’enterro; e o possante, o exuberante tenente Couceiro, grande tocador de viola francesa.

A minha existência era bem equilibrada e suave. Toda a semana, de mangas de lustrina à carteira da minha repartição, ia lançando n’uma formosa letra cursiva, sobre o papel Tojal do Estado estas frases fáceis: «Ill.mo e Exce.mo Snr. – Tenho a honra de comunicar a V. Excª… Tenho a honra de passar às mãos de V. Exc,ª, Ill.mo e Exc.mo Snr…»

Aos domingos repousava: instalava-me então no canapé da sala de jantar, de cachimbo nos dentes, e admirava a D. Augusta, que, em dias de missa, costumava limar com calar d’ovo a caspa do tenente Couceiro. Esta hora, sobretudo no verão era deliciosa: pelas janelas meio cerradas penetrava o bafio da soalheira, algum repique distante dos sinos da Conceição Nova e o arrulhar das rolas na varanda; a monótona sussurração das moscas balançava-se sobre a velha cambraia, antigo véo nupcial da Madame Marques, que cobria agora no aparador os pratos de cerejas bicaes; pouco a pouco o tenente, envolvido n’um lençol como um ídolo no seu manto, ia adormecendo sobre a fricção molle das carinhosas mãos da D. Augusta; e elle, arrebitando o dedo mínimo branquinho e papudo, sulcava-lhe as rêpas lustrosas com o pentesinho dos bichos. Eu, então, enternecido, dizia à deleitosa senhora:

-Ai D. Augusta, que anjo que é!

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