O Mandarim
Eça de Queiroz
Com um Prefácio,
em francês, do Autor
Livaria
Chardron, Porto 1907
Eu chamo-me Theodoro – e fui amanuense do Ministerio
do Reino.
N’esse tempo vivia eu à travessa da Conceição n.º106,
na casa d’hospedes da D. Augusta, a esplendida D. Augusta, viuva do major
Marques. Tinha dosi companheiros: o Cabrita, empregado na Administração do
bairro central, esguio e amarello como uma tocha d’enterro; e o possante, o
exuberante tenente Couceiro, grande tocador de viola francesa.
A minha existência era bem equilibrada e suave. Toda a
semana, de mangas de lustrina à carteira da minha repartição, ia lançando n’uma
formosa letra cursiva, sobre o papel Tojal do Estado estas frases fáceis: «Ill.mo e Exce.mo Snr. – Tenho a honra de
comunicar a V. Excª… Tenho a honra de passar às mãos de V. Exc,ª, Ill.mo e
Exc.mo Snr…»
Aos domingos repousava: instalava-me então no canapé
da sala de jantar, de cachimbo nos dentes, e admirava a D. Augusta, que, em
dias de missa, costumava limar com calar d’ovo a caspa do tenente Couceiro.
Esta hora, sobretudo no verão era deliciosa: pelas janelas meio cerradas
penetrava o bafio da soalheira, algum repique distante dos sinos da Conceição
Nova e o arrulhar das rolas na varanda; a monótona sussurração das moscas
balançava-se sobre a velha cambraia, antigo véo nupcial da Madame Marques, que
cobria agora no aparador os pratos de cerejas bicaes; pouco a pouco o tenente,
envolvido n’um lençol como um ídolo no seu manto, ia adormecendo sobre a
fricção molle das carinhosas mãos da D. Augusta; e elle, arrebitando o dedo mínimo
branquinho e papudo, sulcava-lhe as rêpas lustrosas com o pentesinho dos
bichos. Eu, então, enternecido, dizia à deleitosa senhora:
-Ai D. Augusta, que anjo que é!
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