terça-feira, 11 de março de 2025

HEI-DE LEMBRAR O TIMBRE DE QUANTAS CASAS

hei-de lembrar o timbre de quantas
casas

esse silêncio electrodoméstico que têm
as divisões quando escurece

o número de degraus a porta comum
do prédio modelando a escura matemática
dos sigilos

hei-de lembrar a luz choca
de cada saguão

o tilintar de copos talheres os gritos
anónimos nas traseiras

a velha nespereira dos quintais
que perde folha e fruto sobre o telhado
das garagens

o desejo turvo em que medram as famílias
colonizadas pela televisão

mas hei-de sobretudo bem-dizer
o exacto momento em que o quadro
eléctrico dispara e extingue o que constitui o serão:
esse brilho plasmado pela narrativa
que entretém

alguma coisa dentro de nós
se levanta põe de pé toca o agora
(morada mais encoberta)

até alguém acender o isqueiro dos sentidos
correr a devolver à casa o tangível

Miguel-Manso em Resumo: a poesia em 2013

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