quinta-feira, 6 de março de 2025

OS ITINERÁRIOS DO EDUARDO


Quando começaram, ele deixou escrito que Os Itinerários do Eduardo andavam à volta de poemas seus, de textos que se passeiam pelo livrinho de capa vermelha.

Mas não só, por vezes aparecem por outros caminhos.

É o caso do itinerário de hoje que agarra num livro do Baptista-Bastos «O Cavalo a Tinta-da-China» e um do Eduardo «O Revólver do Repórter».

O Eduardo e o Bastos, para além das conversetas várias em bares, entre cigarradas e copos, trabalharam no Diário Popular. Lembra o Eduardo na crónica, a que chamou «Um soco no estômago», «o retrato de uma solidão que dói» que vem no livro atrás referido:

«Recordo a sala grande da redacção do Diário Popular, conversas de afecto e companheirismo. Recordo, antes e depois, as palavras escritas, os pequenos papéis da solidariedade, o tique nervoso do acender um cigarro, o gesto de agarrar um copo para outra bebida.»

Agora: um soco no estômago. A crueza do vazio. A dolorosa sensação de um frio interior. A cidade cercada, os campos desolados, as conversas perdidas, as ruínas circulares de aldeias remotas envoltas em neblina.

É como se caminhasse com o peso da memória de várias gerações traídas. Fantasmas entram no discurso e riem nas caveiras brancas de tanta ingenuidade.» 

Tempo para voltarmos ao livro do Baptista-Bastos:

Clara espera. Tem um livro na mão. Leu algumas páginas, pousou-o, olha para Manuel, volta a ler algumas páginas, pousa de novo o livro.

- Que livro é esse?

Clara cerra as persianas, volta a pegar no livro, dirigisse-se para o espelho, contempla-se, faz uns gestos grotescos, mima alguém, ri, continua com o livro na mão, ouve-se um estalido da madeira do armário, Manuel segue todos os seus movimentos, Clara lê em voz alta:


Vai então, contador de histórias, e constrói

a nave dos milagres. Procura tudo e todos

nos mínimos sentidos, no lírio das barmas,

na nuvem secreta, nas formigas, no bosque

que se forma ao virar da esquina.

É no real que encontras o sentido último

do mais profundo e mágico mundo novo.


- Que livro é esse?

- Do Eduardo Guerra Carneiro. Trouxeste-o há dias.

- Ah!, pois. Estive a beber com ele.

- Pois. Já vinhas com uns dedos acima do nível.

- Gosto de beber com ele. É um tipo cordial e louco.

- É bom poeta?

- É muito bom poeta.

- Suficientemente bom?

- Quem o é?

- Quem vence a morte – diz Clara, mais baixo, e retém o olhar em Manuel. – Quem morre e permanece vivo

- Ou aqueles que disseram coisas que ninguém tinha dito até então.»

Legenda: Baptista-Bastos no Ritz Club, fotografia tirada do catálogo da Exposição Baptista-Bastos: Prosador do Mundo, Museu do Neo-Realismo, Abril 2008.

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