Lx, 11-3-75
Querida Marta,
não vais entender nada do que contam os jornais, nem nós, chamados
testemunhas visuais, conseguimos perceber a aventura surrealista dum teco-teco
militar sobrevoando a saloia capital durante mais de uma hora, metralhando um
único quartel onde matou um soldado e regressou à base, liquidando a direita
acusada de ter tentado tomar o poder com este avião de brinquedo, arrumada por
isso para os próximos meses. Perdeste a oportunidade de presenciar uma
intentona pela TV, que filmou o impagável diálogo dum oficial intentonista com
o célebre Dinis de Almeida, comandante do quartel metralhado e sitiado pelo
pelotão ou talvez nem isso, por um grupo de soldados “reaças” que começaram a
chorar diante da TV quando a esquerda razoável lhes explicou terem sido
enganados, manobrados ou obrados pelos maus que, como bons malandros já fugiram
para Espanha deixando os pobres soldados ali de G3 na mão sem saberem bem
porquê nem contra quem nem para quê nem para quem, os chefes só lhes disseram
que era preciso ir salvar a revolução em perigo e todos se consideram
salvadores da cuja dita. O Woody Allen tinha previsto um assassinato de
presidente de república dado em directo pela TV, mas acho que a nossa ridícula
realidade ultrapassa em tragicómico a ficção de “Bananas”. À hora em que te
escrevo já os vencedores preparam a mitificação ou beatificação do soldado
Luís, vítima desta brincadeira de mau gosto, ele que não tinha nenhum interesse
em ver-se transformado em herói. Como explicação para tãoabsurda e obtusa acção
de fogo, fala-se numa #matança da Páscoa” que o lobo mau prepararia a fim de
cortar uma série de cabeças. Quem meteu isto nas fracas cabeças assim
ameaçadas, ou se elas próprias inventaram tal estória, ignoro-o. Um ano de
revolução permanente, ardentemente sonhada por nós leitores de Lev, começa a
fatigar a burguesia que no início a ela aderiu por curiosidade ou simples
desejo de mudar, como se fosse novo vestido ou penteado. Agora volta a vir ao
de cima o nosso secular cepticismo, indiferença, fatalismo, transformado em
gesto nacional o encolher-de-ombros de outrora conhecido. A fase de instrução
colectiva luta agora contra as forças da inércia. Dizia mestre Lev: à fusão
criadora do consciente com o inconsciente é que se chama inspiração. No momento
em que a inércia tenta tomar conta do prec, uma espécie de usura apodera-se das
pessoas, passam a pensar em termos de contabilidade, esquecem que com usura
nenhum homem tem casa de boa pedra, que a usura é uma praga, que com usura,
pecado contranatura, talvez se chegue ao poder, não se chega à liberdade.
Também eu não chego a nenhum lado, a não ser aos exames que não sei se se
fazem. De resto para que serve estudar leis num país que quero deixar? Ainda
por cima leis tornadas diariamente arcaicas pela constante inflação da
legislação, inflação só semelhante à da nossa moeda, pobre dela.
Da próxima vez prometo carta diferente, falando mais
de mim que do prec que afinal te não interessa. Pergunto-me se eu te interesso.
Teu
JC
Almeida Faria em
Lusitânia
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