sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


Jorge de Sena estava no seu segundo ano de exílio no Brasil.

De Araraquara, e datada de 29 de Dezembro de 1961, Jorge de Sena escreve a José Augusto-França:

… vi em São Paulo, com uma emoção incrível, o CouraçadoPotemkin. Até me deu poema. Que coisa maravilhosa: talvez de ver que aquele couraçado nunca mais chega a nenhum porto deste canalha mundo é que eu fiquei mais triste.

É este o poema:

Entre a esquadra que aclama
o couraçado passa.
Depois da fila interminável que se alonga
sobre o molhe recurvo na água parda,
depois do carro de criança
descendo a escadaria,
e da mulher de lunetas que abre a boca em gritos mudos,
o couraçado passa.
A caminho da eternidade. Mas
foi isso há muito tempo, no Mar Negro.

Nos cais do mundo, olhando o horizonte,
as multidões dispersas
esperam ver surgir as chaminés antigas,
aquele bojo de aço e ferro velho.
Como os vermes na carne podre que
os marinheiros não quiseram comer,
acotovelam-se sórdidas na sua miséria,
esperando o couraçado.

Uns morrem, outros vendem-se,
outros conformam-se e esquecem e outros são
assassinados, torturados, presos.
Às vezes a polícia passa entre as multidões,
e leva alguns nos carros celulares.
Mas há sempre outra gente olhando os longes,
a ver se o fumo sobe na distância e vem
trazendo até ao cais o couraçado.

Como ele tarda. Como se demora.
A multidão nem mesmo sonha já
que o couraçado passe
entre a esquadra que aclama.
Apenas, com firmeza, com paciência, aguarda
que o couraçado volte do cruzeiro,
venha atracar no cais.

Mas mesmo que ninguém o aguarde já,
o couraçado há-de chegar. Não há
remédio, fugas, rezas, esconjuros
que possam impedi-lo de atracar.

Há-de vir e virá. Tenho a certeza
como de nada mais. O couraçado
virá e passará
entre a esquadra que o aclama.

Partiu há muito tempo. Era em Odessa,
no Mar Negro. Deu a volta ao mundo.
O mundo é vasto e vário e dividido, e os mares
são largos.
Fechem os olhos,
cerrem fileiras,
o couraçado vem.



O poema Couraçado Potemkin, escrito depois de ver o filme Eisenstein foi retirado de Poemas Com Cinema, organização de Joana Matos Frias, Luís Miguel Queiroz e Rosa Maria Martelo, Assírio &Alvim, Lisboa Novembro de 2010.

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