sexta-feira, 20 de setembro de 2013

AINDA MORRO ANTES DELE


20 de Setembro de 1968

Neste dia foi fornecido o seguinte boletim médico:
                                                                                                                                 
O estado do Sr. Presidente da República é aproximadamente estacionário: respiração auxiliada; tensão arterial 16/8; pulso 80 por minuto; temperatura 38,3.
Embora haja melhoria da actividade reflexa, o prognóstico mantém-se reservado.

Às 14,50 compareceu no Hospital o Cardeal-Patriarca de Lisboa.

José Gomes Ferreira no 5º volume dos seus Dias Comuns:

O Salazar continua em coma… «O estado mantém-se estacionário» - como se diz em linguagem de boletim médico.
A Rosalia, temerosa:
- Vais ver que ainda morro antes dele)
Reflexo de uma preocupação generalizada há muito em certa camada da população que sentia como que uma espécie de desonra morrer antes dele… (Tantos que se foram a suspirara o desejo irrealizado de vê-lo morto!)
O pior é que vai continuar a viver – pela mediocridade do país dentro.
No fim de contas (falemos já como historiador-jornalista-testemunha) foi um político afortunado. Reinou discricionariamente durante quarenta anos de tirania, e morre na cama, convencido de que era amado de toda a gente, como declarou meio gagá, na última entrevista concedida a um jornal estrangeiro. Era porventura idolatrado abstractamente pela burguesia endinheirada, católica e monárquica que via nele o Grande Medíocre necessário, que tinha preenchido por fim o modelo esboçado por João franco e Sidónio Pais, anos antes.
Não foi amado, nem podia sê-lo, sempre de ponteiro em punho e distante, a ler para um aís-classe de cábulas, o fala-só das suas sebentas pretensiosas, muito apreciadas, porque espalhavam com eficácia o tédio adormecedor e monopolizador da inteligência (oficial) portuguesa.
Frio como um perfil de punhal, nunca teve um gesto de bondade pública: o preso que se solta por ímpeto de coração, a injustiça que se repara, por gosto de não ver o espelho humilhar-nos, o filho que se leva à cabeceira da mãe moribunda…
Implacável. Em tudo. Principalmente quando se tratava da defesa dos tabus reverentes da sua adolescência de padre falhado e filho de feitor: as calças de fantasia, o chapéu de abas reviradas, as ambições medíocres do Senhores que queriam também à força, como lá fora, gozar as delícias da Civilização Burguesa, implantada pelo gáudio de um milhão de pessoas (o máximo), enquanto, pelo menos, seis milhões mourejam o seu destino de bicharada reles.
Quanto à vida de espírito, metia dó, Nunca ouviu um concerto sinfónico, uma peça de teatro, ou leu um livro de poesia… E, no entanto, ditava leis sobre estética, sobre edifícios e estragou a Batalha com a estátua imbecil de Nuno Álvares Pereira, modelada por Leopoldo Almeida.
(estou a recordar-me de que o Agora-Moribundo disse uma vez a Francisco Franco esta enormidade - «O monumento mais belo de Lisboa é o da Guerra Peninsular.» - «Falta-lhe um sistema de relojoaria, para lhe mover os bonecos…» - respondeu o famoso escultor, católico e salazarista.)
Mediania em tudo, menos na vaidade que o induziu a atitudes feíssimas, como a daquele indigno discurso sobre a morte de Humberto delgado, insultando-o com a presunção mentirosa de que o ex-candidato à Polícia para denunciar os companheiros de luta. E, por último, encerrou a carreira com a deportação de Mário Soares que o incomodava por denunciar a corrupção sexual de certos homens da classe dominante e desejar o julgamento dos assassinos de Humberto Delgado
Isto não é um libelo – note-se bem. É um deixar correr a pena improvisadora num comentário ligeiro e benévolo.

Legenda: O Sr. Cardeal Patriarca de Lisboa falando aos jornalistas, na Casa de Saúde da Cruz Vermelha.
Fotografia e legenda do Notícias de Portugal nº 1117

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