Os Memoráveis
Lídia Jorge
Capa: Rui Garrido
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Março de 2014
O cavaleiro fez um breve hiato no seu depoimento que tinha fatalmente
de ser muito rápido, tendo em conta que não dispunha de mais do que de cinco
minutos- Disse - «Ah! Deixem-me pensar. O momento mais importante?» El
Campeador continuava a pensar - «Arnoldo, já lhe disse, segure bem esse animal.
Pois eu estou aqui a pensar que o momento mais importante, aquele que mais
esperanças me deu de que a revolução tinha pernas para andar, foi aquele que se
seguiu à passagem do poder a um general que usava um caco de vidro no olho
direito. Esse general, durante toda a noite e manhã do dia vinte e cinco, tinha
ficado a fingir-se de morto, enfiado em casa, à espera do desenlace, para ver
para onde caíam as cartas, mas duas horas depois de lhe termos passado o
comando, ainda nem nos tinha visto o rosto, e logo ali começou a inaugurar o
período do desmame revolucionário. O general fixava cada um de nós através
daquela lente de vidro, como se a lente fosse um periscópio, e mandava apontar
nomes e actos, dizendo que era sua intenção distribuir prebendas a quem tinha
feito o golpe de Estado. Mas um de nós avançou e disse. Não queremos recompensa
nenhuma. Não foi para isso, senhor general, que arriscámos as nossas vidas. Não
queremos nada para nós. Este é um princípio sagrado. E tome cuidado connosco,
general. Olhe que este dia ainda não terminou, a revolução ainda está na rua,
os tanques ainda não regressaram aos quartéis, e os rapazes que têm as armas só
vão precisar de dormir lá para o mês que vem. Falou assim quem estava ao meu
lado. E pensando bem, esse foi o melhor momento daquela longa noite e daquele
longo dia, aquele que justifica que amanhã eu possa dizer, durante as filmagens
para O Herói do Mar, que passados
trinta anos ainda existem tanques no meio da rua à espera do que possa
acontecer. Basta um assobio no escuro, e zut…»
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