terça-feira, 29 de abril de 2014

OLHAR AS CAPAS


Os Memoráveis

Lídia Jorge
Capa: Rui Garrido
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Março de 2014

O cavaleiro fez um breve hiato no seu depoimento que tinha fatalmente de ser muito rápido, tendo em conta que não dispunha de mais do que de cinco minutos- Disse - «Ah! Deixem-me pensar. O momento mais importante?» El Campeador continuava a pensar - «Arnoldo, já lhe disse, segure bem esse animal. Pois eu estou aqui a pensar que o momento mais importante, aquele que mais esperanças me deu de que a revolução tinha pernas para andar, foi aquele que se seguiu à passagem do poder a um general que usava um caco de vidro no olho direito. Esse general, durante toda a noite e manhã do dia vinte e cinco, tinha ficado a fingir-se de morto, enfiado em casa, à espera do desenlace, para ver para onde caíam as cartas, mas duas horas depois de lhe termos passado o comando, ainda nem nos tinha visto o rosto, e logo ali começou a inaugurar o período do desmame revolucionário. O general fixava cada um de nós através daquela lente de vidro, como se a lente fosse um periscópio, e mandava apontar nomes e actos, dizendo que era sua intenção distribuir prebendas a quem tinha feito o golpe de Estado. Mas um de nós avançou e disse. Não queremos recompensa nenhuma. Não foi para isso, senhor general, que arriscámos as nossas vidas. Não queremos nada para nós. Este é um princípio sagrado. E tome cuidado connosco, general. Olhe que este dia ainda não terminou, a revolução ainda está na rua, os tanques ainda não regressaram aos quartéis, e os rapazes que têm as armas só vão precisar de dormir lá para o mês que vem. Falou assim quem estava ao meu lado. E pensando bem, esse foi o melhor momento daquela longa noite e daquele longo dia, aquele que justifica que amanhã eu possa dizer, durante as filmagens para O Herói do Mar, que passados trinta anos ainda existem tanques no meio da rua à espera do que possa acontecer. Basta um assobio no escuro, e zut…»

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