domingo, 22 de novembro de 2015

OLHAR AS CAPAS


Queres Fazer o Favor de te Calares?

Raymond Carver
Capa: Jorge Colombo
Colecção “Estórias” nº 21
Editorial Teorema, Lisboa 1989

Ele estava a ler-lhe Rilke, um poeta que admirava, quando ela adormeceu com a cabeça no travesseiro dele. Gostava de ler em voz alta e lia bem, numa voz confiante e sonora, ora baixa e grave, ora retumbante, ora excitante. Enquanto lia nunca desviava os olhos da página e apenas interrompia para estender o braço para a mesinha-de-cabeceira e pegar num cigarro. Era uma voz que a transportava até um sonho povoado de caravanas que iniciavam uma viagem a partir das cidades rodeadas de ameias, com homens barbudos vestidos com túnicas. Tinha-o escutado durante alguns minutos, fechara os olhos e adormecera. Ele continuou a ler em voz alta. Os miúdos já estavam a dormir e lá fora passava um carro de vez em quando, no pavimento molhado. Passado algum tempo, pousou o livro e virou-se na cama para alcançar o candeeiro. Ela abriu os olhos de repente, como se estivesse assustada, e pestanejou duas ou três vezes. As pálpebras pareciam-lhe, a ele, estranhamente escuras e papudas, enquanto se abriam e fechavam por cima dos olhos vítreos e fixos. Ele olhou para ela.
- Estás a sonhar? - perguntou.
Ela acenou com a cabeça e levantou a mão para tocar nos rolos de plástico, de cada lado da cabeça. Amanhã era sexta-feira, o seu dia de tomar conta das crianças dos 4 aos 7 anos, nos apartamentos Woodlawn. Ele continuava a olhar para ela, apoiado no cotovelo, tentando ao mesmo tempo endireitar a coberta da cama com a mão livre. Ela tinha um rosto com uma pela lisa e as maçãs do rosto salientes. As maçãs do rosto, frisava ela às vezes aos amigos, eram do lado do pai, que tinha uma quarta parte de Nez Percé.
- Mike, faz-me uma sanduíche qualquer. Com manteiga, alface e sal no pão. Ele não fez nada nem disse nada, porque queria dormir. Mas, quando abriu os olhos, ela ainda estava acordada, a observá-lo.
- Não consegues dormir, Nan? - perguntou ele, de forma muito solene. - Já é tarde.
- Gostava de comer qualquer coisa primeiro - disse ela. - Não sei porquê, doem-me as pernas e os braços, mas estou com fome.
Ele resmungou exageradamente e rolou para fora da cama.
Preparou-lhe uma sanduíche e trouxe-lha num pires. Ela sentou-se na cama e sorriu quando ele entrou no quarto, colocando um travesseiro atrás das costas enquanto segurava no pires. Ele imaginou que ela parecia uma doente de hospital, com a sua camisa de dormir branca.
- Que sonhozinho estranho que tive.
- Com o que é que estavas a sonhar perguntou ele, metendo-se na cama e deitando-se de lado, afastado dela.
Ficou a olhar para a mesinha-de-cabeceira à espera. Depois, fechou lentamente os olhos.
- Queres mesmo que te conte? - perguntou ela.
- Claro – disse ele
Ela recostou-se confortavelmente no travesseiro e tirou uma migalha de pão do lábio.

(Do conto A Mulher do Estudante)

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