Memória de Elefante
António Lobo
Antunes
Colecção O Chão
da Palavra
Editorial Veja,
Lisboa, s/d
São cinco da manhã e juro que não sinto
a tua falta. A Dóri está lá dentro a dormir de barriga para cima, de braços
abertos crucificados no lençol, e a dentadura postiça, descolada do céu da
boca, avança e recua ao ritmo da respiração num ruído húmido de ventosa.
Bebemos ambos a aguardente da cozinha pelo púcaro de folha, sentados nus na
cama que o gás de guerra tornou inabitável carbonizando até as folhas
estampadas das fronhas, escutei-lhe as confidências prolixas, enxuguei-lhe o
choro confuso que me tatuou o cotovelo de um arbusto de rímel, puxei-lhe o
cobertor até ao pescoço à laia de um sudário piedoso sobre um corpo desfeito, e
vim para a varanda arrancar os dejectos endurecidos dos pássaros. Está frio, as
casas e as árvores nascem lentamente do escuro, o mar é uma toalha cada vez
mais clara e perceptível, mas não penso em ti. Palavra de honra que não penso
em ti. Sinto-me bem, alegre, livre, contente, oiço o último comboio lá em
baixo, adivinho as gaivotas que acordam, respiro a paz da cidade ao longe,
desdobro-me num sorriso feliz e apetece-me cantar. Se eu tivesse telefone e me
telefonasses agora deverias encostar cuidadosamente o auscultador à orelha numa
expectativa de búzio: através das espiras de baquelite, vindo de quilómetros de
distância, desta varanda de betão suspensa sobre o fim da noite, terias,
juntamente com o eco do meu silêncio, o vitorioso eco do meu silêncio, o piano
amortecido das ondas. Amanhã recomeçarei a vida pelo princípio, serei o adulto
sério e responsável que a minha mãe deseja e a minha família aguarda, chegarei
a tempo à enfermaria, pontual e grave, pentearei o cabelo para tranquilizar os
pacientes, mondarei o meu vocabulário de obscenidades pontiagudas. Talvez
mesmo, meu amor, que compre uma tapeçaria de tigres como a do Senhor Ferreira:
podes achar idiota mas preciso de qualquer coisa que me ajude a existir.
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