Entre a malta do
meu bairro de menino, o Vitinha ficou sempre no retábulo dos intocáveis. Tinha
sobre todos nós a vantagem dos olhos azuis, dos caracóis loiros e do dinheiro
aos domingos, para o cinema e os rebuçados. No pátio da Surda, que era o centro
do nosso universo, o sítio onde se conspiravam as púrrias, se contavam
histórias, se fumavam cigarritos sorrateiros, no pátio da Surda, Vitinha tinha
lugar de cabeça. Os pais compravam-lhe revistas com bonecos desenhados, e ele
tinha um fato à maruja e boné branco com pom-pom vermelho. Quando vínhamos da
escola parávamos por ali: Naftalina, o Descasca-Milho, o Necas Bexiga, o
Dá-e-Foge, o Pingado e eu. Eu era o Transparente. Vitinha era o Vitinha.
Intocável. Sem alcunha e intocável. Quando os rapazes das outras ruas puxavam
os caracóis do Vitinha, logo a malta organizava uma púrria. Quando o Vitinha
caiu pelas Escadinhas do Monte e partiu a tola, fomos todos vê-lo a casa.
Quando o Vitinha bateu no filho do Zé Caroço demos uma tareia no filho do Zé
Caroço. Quando o Vitinha roubou um ananás da porta da mercearia do Meireles,
confessei-me culpado.
Feita a quarta
classe, os nossos pais decidiram que já sabíamos muito.
Ficámos contentes
com a responsabilidade de ser homens e fomos cada qual à nossa vida. Vitinha
para o liceu. Uns continuaram no bairro; outros atravessaram a fronteira da rua
antiga e foram para ruas novas, descobrindo a cidade. Vitinha cortou os
caracóis, mas permaneceu de cabelos loiros e de olhos claros. Namorou a Amélia,
que trabalhava na costura com a Dona Maria dos Remédios, e casou com uma
rapariga alta da Faculdade. «Parabéns, Vitinha», dissemos todos sorridentes e
felizes quando o anjo intocável lá foi com a noiva, num automóvel negro e
imenso. Falámos sempre no Vitinha, no decorrer dos anos. Era o único doutor do
bairro, e a nossa glória conseguida. Foi presidente de sociedades, discursou em
actos onde se proclamavam princípios, lá apareceu nos jornais, cheio de
condecorações com o ar grave de quem medita e de quem serve. «O Vitinha. Vejam
o Vitinha. Aquilo é que é um homem, um grande homem.» Dizíamos isto uns aos
outros, os antigos rapazes do bairro, muito contentes pelo seu destino
irretorquível.
Aqui há semanas
perdi o emprego, e aqui há dias a minha mulher, a Amélia, disse-me: «Vai ao
Vitinha, homem; ele sempre há-de arranjar qualquer coisa.» Bela ideia. À noite
disse aos amigos: Amanhã vou ver o Vitinha. Vou falar com ele…
Todos ficaram
alegres. «Dá lá recomendações, pá», disse o Naftalina. «Não te esqueças»,
avisou o Necas Bexiga.
No outro dia, lá
fui ao prédio alto.
Disse o meu nome à
empregada do consultório, ela desapareceu por uma porta, e voltou quase a
seguir: «O sr. dr. pergunta se o seu assunto é urgente, se não pode esperar uns
dias.»
Interrompi a
empregada: «Olhe, diga ao sr. dr. que está aqui o Transparente.» Era uma
invenção súbita, uma sigla que a rapaziada da antiga confraria entendia
abertamente. Ela voltou e disse:
- Desculpe, mas o
sr. dr. manda dizer que não o conhece»…
Baptista-Bastos em Cidade Diária
2 comentários:
Gostei muito do livro
É, realmente, um livro muito bonito. Aqui pela casa gostamos do Baptista-Bastos, mais das suas crónicas que dos seus romances.
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