sábado, 31 de outubro de 2020
POSTAIS SEM SELO
Quem está a morrer fala uma outra língua. Próximo da morte somos já estrangeiros. Gonçalo M. Tavares
ANTOLOGIA DO CAIS
Para assinalar os 10
anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana
estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.
SARAMAGUEANDO
O livro, no bom dizer do saudoso editor
Manuel Hermínio Monteiro deve conter a própria vida dos que com ele
lidam quotidianamente.
Sou do tempo em que os livros estavam ao
cuidado de gente culta.
Orgulhosamente profissionais, livreiros
e editores sabiam o que tinham entre mãos.
Com a chamada globalização, os livreiros
foram substituídos por computadores e os grandes grupos editoriais como a Leya,
Porto Editora, Bertrand &Cª Lda, desataram a comprar pequenas e
grandes editoras, não com o objectivo de as valorizar mas para, simplesmente,
ganharem algo com o negócio.
Por exemplo, Miguel Pais do Amaral, um
empresário de tudo e mais alguma coisa, constituiu a Leya e
comprou, entre outras pequenas editoras, as Publicações Dom Quixote e
a Editorial Caminho que têm nos seus catálogos diversos
escritores portugueses e jóias da coroa como António Lobo Antunes, e José
Saramago.
Numa entrevista à Notícias Sábado,
Fevereiro de 2010:
Os carros são o meu hobby, é algo que me
acompanha desde sempre. Em termos competitivos, fui evoluindo aos poucos e
agora isto é o máximo. O prazer de correr é único e sinto-me um privilegiado.
Pierre Bourdieu, citado por Arnaldo
Saraiva, disse que o editor é um personagem duplo que deve saber
conciliar a arte e o dinheiro.
Claro que é possível gostar de carros e
de livros ou, como na aldeia de Asterix, ser-se bárbaro e gostar de flores, mas
não é o caso do personagem que presidencialmente se senta numa cadeira do
edifício Leya.
Mário de Carvalho, durante muitos anos
editado pela Caminho, em 2012 abandonou o
grupo Leya pois não estava sujeito a que tivessem
demorado três anos para saber quem ele era.
Acho que quem
sabe de livros, deve fazer livros, quem sabe de cervejas ou de sabonetes deve
tratar de cervejas ou de sabonetes…
Quarta-feira ficámos a saber que José
Saramago não volta a ser publicado pela Leya.
Não se conhecem os contornos da decisão,
apenas se sabe que chegou ao fim uma relação editorial iniciada há 35 anos, com
a publicação de A Noite.
A posição da Leya surge
depois de uma das editoras do grupo a Editorial Caminho, ter
anunciado deixar de publicar as obras de José Saramago, por falta de acordo com
as herdeiras do Nobel da Literatura.
As herdeiras de José Saramago e a
Editorial Caminho informam que não foi possível chegar a acordo sobre as
condições contratuais que permitiriam continuar a publicar nesta editora a obra
do escritor, lê-se num comunicado assinado
pelas herdeiras do escritor, a viúva, Pilar del Rio, e a filha, Violante
Saramago Matos, e ainda por Tiago Morais Sarmento e Zeferino Coelho.
José Sucena, administrador da Fundação
José Saramago já tornou público que a instituição está a fazer diligências
no sentido de encontrar uma editora que sirva a Saramago e a quem Saramago
sirva, e avançou a hipótese de, caso não seja encontrada uma editora, ser a
própria fundação e editar os livros de José Saramago
Almeida Faria, João Tordo, José Eduardo
Água Lusa, Ricahrd Zimler, João Tordo, os herdeiros de Sophia Mello Breyner
Andresen, o anteriormente citado Mário de carvalho, já abandonaram a Leya.
Miguel Sousa Tavares seguiu o mesmo
caminho e, hoje, em declarações ao Público, fala de
descontentamento quanto ao trabalho do grupo que, matou a identidade das
editoras” que agregou desde a sua fundação, em 2008. Não creio que o grupo Leya
esteja vocacionado para a edição de livros. A Leya partiu do princípio que
juntando várias editoras faziam sinergias e conseguiam fazer melhor, mas isto
não é como juntar as salsichas Nobre com as salsichas Aveirense.
Texto
publicado em 24 de Janeiro de 2014
sexta-feira, 30 de outubro de 2020
NOTÍCIAS DO CIRCO
O título dizia:
Agora
é definitivo: governo suspende desporto este fim de semana.
Mas
as primeiras linhas do texto adiantavam que apenas as 1ª e 2ª ligas de futebol
iriam ser realizadas.
Mas
o futebol não é desporto?
Ou
estaremos sujeitos às ditaduras das televisões?
O
que nós queremos é futebol tal como, naquele funesto tempo, mandou dizer o
botas de Santa Comba
Mário
Castrim numa crítica de televisão em Setembro de 1974:
«Mesmo para quem gostava de assistir ao futebol, uma tarde de domingo passado no campo da bola acabava por se transformar num hábito de vergonha. Quanta vez ao sair do Estádio Nacional os nossos olhos se toldavam ao voltarem-se para a prisão de Caxias que se via ao longe…»
POEMAS DA MINHA RUA
Quando
encostam
ou
abrem
o
portão
do
pátio do Duarte
na
minha rua sossegada
à
tarde
é
como se os músicos
afinassem
os instrumentos
antes
do concerto
Adília Lopes
quinta-feira, 29 de outubro de 2020
POSTAIS SEM SELO
Nesse
tempo ainda era possível encontrar Deus pelos baldios. Isso foi antes de
aprender álgebra.
José Tolentino Mendonça
... E OS DIAS DIMINUEM
Lentamente, começo a preparar-me para outro confinamento.
Voltar
a memorizar os passos dentro de casa: janela da frente, janela das traseiras.
Continuar
as (re)leituras, ouvir as velhas músicas, continuar a acreditar que o velho
reprodutor de cassettes VHS não dê o berro, porque nessas cassettes é que estão
os filmes de que gosto mesmo.
As
memórias vivas dos livros, dos discos, dos filmes, da casa.
Escolher
e falar de coisas simples, aquelas coisas insignificantes que nos emocionam até
aos limites da ternura.
O
título é roubado de September Song, cantada pelo Frank Sinatra, ou pela Ella, ou
pelo Willie Nelson: ...and the days
dwindle down.
Músicas
contra esse inferno que dá pelo nome de Covid-19,
É
isso.
Valham-nos os deuses todos do Olimpo!
O PÃO DE CADA DIA
Que
o pão encontre na boca
o abraço de uma canção
construída no trabalho.
Não a fome fatigada
de um suor que corre em vão.
Que
o pão do dia não chegue
sabendo a travo de luta
e a troféu de humilhação.
Que seja a bênção da flor
festivamente colhida
por quem deu ajuda ao chão.
Mais
do que flor, seja fruto
que maduro se oferece,
sempre ao alcance da mão.
Da minha e da tua mão.
Thiago de Mello
Legenda: fotografia Shorpy
quarta-feira, 28 de outubro de 2020
POSTAIS SEM SELO
A minha infância foi o meu avô, mais do que o meu pai. Odiei a minha mãe, que tinha partido sem me avisar, o meu pai, que não tinha sido capaz de fazer nada para o impedir, Deus porque tinha querido aquilo, e o avô porque lhe parecia normal que Deus quisesse coisas assim.
DEMORAR NO QUE DÓI
Somos todos uns sentimentais e por isso demoramos no que nos dói. Temos o choro fácil que dá ou não dá em lágrimas, guardamos as dores cheias de pormenor enquanto as felicidades ficam por ali, confusas, com algumas caras, alguns sons, incertas e vagas. Lembramos os sapatos que calçávamos quando alguém morreu, a hora da notícia, o programa que passava nesse instante e até as vergonhas que pensámos. Folheemos as páginas do riso e pouco encontraremos, algumas frases, momentos caricatos, elementos de uma paisagem. Pouco e mal contado, estávamos distraídos, demasiado ocupados na felicidade para lhe fazermos o retrato. Somos tolos e sentimentais, temos arcas cheias de mágoas que não esquecemos e que abrimos a todo o momento a ver se ainda nos doem, e doem sempre. Descuramos o arquivo do bem que apesar de tudo nos vai acontecendo, somos tolos de lágrimas.
OLHAR AS CAPAS
Interlúdio Negro
Peter Cheyney
Tradução: Almeida
Campos
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº
126
Livros do Brasil,
Lisboa s/d
Shaun Aloysius O’Mara aproximou-se, aproveitando a sombra do muro baixo
que delimitava a pequena igreja. Saltou desajeitadamente o muro e começou a
andar através do adro em direcção do magestoso cedro.
Estava calor. O sol caía impiedosamente sobre a terra onde não corria a
mais leve aragem. O’Mara tropeçou a caiu praguejando horrivelmente. Viu por
cima do ombro a pequena figura do cura com o seu hábito escuro, a sotaina
brilhante, a face magra e branca.
O’Mara começou a rir. Riu-se para o padre. Depois começou a cantar uma
canção obscena em língua bretã.
O TEMPO CONCRETO
O tempo duro
com estas unhas de pedra
este hálito pobre
de órgãos esfomeados
estas quatro paredes de cinza e álcool
este rio negro correndo nas noites como um esgoto
O tempo magro
em que minhas mãos divididas
nitidamente separadas e caídas
ao longo dum corpo de cansaço
pedem o precipício a hecatombe clara
o acontecimento decisivo
O tempo fecundo
dos sonhos embrulhados repetidos como um hálito de febres
repassadas no travesseiro igual das noites e dos dias
das ruas agrestes e pequenas da mágoa
familiar e precisa como uma esmola certa
O tempo escuro
da peste consentida do vício proclamado
da sede amarfanhada pelas mãos dos amigos
da fome concreta dum sonho proibido
e do sabor amargo dum remorso invisível
O tempo ausente
dos olhos dum desejo de claras cidades
em que acenamos perdidos às soluções erguidas
com vozes bem distintas de cadáveres opressores
com gritos sufocados de problemas supostos
O tempo presente
das circunstâncias ferozes que erguem muros reais
dos fantasmas de carne que nos apertam as mãos
das anedotas contadas num outro mundo de cafés
e das vidas dos outros sempre fracassadas
O tempo dos sonhos
sem coragem para poder vivê-los
com muralhas de mortos que não querem morrer
com razões de mais para poder viver
com uma força tão grande que temos de abafar
no fragor dos versos disfarçados
O tempo implacável
em que juramos de pé viver até ao fim
maiores dos que nós ser todo o grito nu
pureza conquistada no seio da vida impura
um raio de sol de sangue na face devastada
O tempo das palavras
numa circulação sombria como um poço
de ecos incontrolados
de timbres inesperados
como moedas de sangue cunhadas numa noite
demasiado curta e com luar de mais
O tempo impessoal
em que fingimos ter um destino qualquer
para que nos conheçam os amigos forçados
para que nós próprios nos sintamos humanos
e este fardo de trevas esta dor sem limites
a possamos levar numa mala portátil
O tempo do silêncio
em que o riso postiço dos fregueses da vida
finge ignorá-lo enquanto soluçamos
de raiva de razão reprimida revolta
e os senhores de bom senso passeiam divertidos
O tempo da razão
(e não da fantasia)
em que os versos são soldados comprimidos
que guardam as armas dentro do coração
que rasgam os seus pulsos para fazer do sangue
a tinta de escrever duma nova canção
António Ramos Rosa de Viagem Através de Uma Nebulosa em Obra Poética I
terça-feira, 27 de outubro de 2020
POSTAIS SEM SELO
Não se pode ser
nada, quando o solo debaixo dos pés é um coágulo informe sorvido por outros
corpos sociais dominantes de que os que governam são apenas lacaios.
Maria Velho da Costa em Cravo
Legenda: pintura de Edward Hopper
CONVERSANDO
Voltaremos ao silêncio das ruas desertas?
No exacto momento
em que começo a escrever, o mundo atingiu o número de 1.164.094 mortes causadas
pela covid-19.
Os que destas coisas sabem, dizem que teremos 4 mil casos
por dia em Novembro.
Faltam agentes fiscalizadores: incúria, descuido?
Os gabinetes dos 70 membros do Governo têm ao seu serviço
1236 pessoas.
Razão tinha a Alexandra Alpha:
«Isto não é um
país, é um sítio mal frequentado.»
5.
Vai ficar tudo bem
deu-nos a ideia de que o ataque que enfrentávamos nos tornaria pessoas diferentes,
solidárias, compreensivas.
A pergunta é retirada da 1ª página do Expresso.
Numa altura em que tanta gente perdeu o emprego e outros aguardam o dia pela chamada para lhes comunicarem a extinção do seu posto de trabalho, ficamos a saber que os mais ricos ficaram ainda mais ricos.
6.
O governo, o
orçamento o Novo Banco.
Palavras de Francisco
Louçã:
«Num tempo em que
falta dinheiro para contratar médicos, fechar os olhos às manigâncias pouco
imaginativas dos banqueiros não é política. É gosto pelo abismo. E sobretudo,
desmerece o país.»
7.
Ferreira Fernandes, no Público, cita o filme Os Amantes do Tejo em que Amália Rodrigues aparece a cantar Barco Negro e onde um miúdo de Alfama pergunta a Daniel Gélin se gostava de viajar e ele respondia: «Gosto é de partir.»
8.
No ano de 1973 a
Arcádia pediu a Manuel da Fonseca que fizesse uma biografia de Amália
Rodrigues.
O livro nunca foi
publicado mas, recentemente alguém descobriu as fitas gravadas das conversas
que Manuel Fonseca teve com Amália. Totalizam cerca de nove horas. Nelson de
Matos e a Porta Editora, com o enquadramento e notas de Pedro Castanheira,
publicaram, agora, o livro que tem por título «Amália nas suas Palavras». Rui
Vieira Nery escreveu o prefácio.
Eu que tento gosto do
Manuel da Fonseca e da Amália, dirigirei um destes dias os meus passos para
comprar o livro.
Sobre Amália, no seu
livro «Amália: Dos Poetas Populares aos Poetas Cultivados» escreveu Vasco Graça
Moura: «soube incutir como mais ninguém um acento profundamente dramático à expressão
daquilo que cantava. Não apenas por ser dotada de uma voz absolutamente
extraordinária. A sua articulação por vezes centrava-se mais no significante do
que no significado, mas acabava restituindo misteriosamente a este último todo
o seu valor, e encontrou ou inventou melismas, inflexões verbais, tensões
intrasilábicas, portamentos, arabescos e outros efeitos vocais, alguns
porventura de uma inspiração mediterrânica bebida da Andaluzia à Córsega, mas
todos eles únicos, pessoais, intransmissíveis e sobretudo singularmente
adequados a traduzir uma entrega total à intensidade dos sentimentos, das
dilacerantes violências da paixão à angústia mais torturada, à ternura mais
límpida, ou à alegria simplesmente ingénua dos fados que ela cantava.»
Lágrima tem versos de Amália Rodrigues que, segundo Vasco Graça Moura «é uma obra-prima».
Nota do editor: a citação do livro de Vasco da Graça Moura é retirada de um artigo de Nuno Pacheco publicado no Público.
AÇO
Quebre-se de encontro à dureza das arestas
cada desregrada ilusão da minha vida.
Que os bichos vão roendo o vão caruncho
da inútil poeira de astros que imagino.
Que — sei-o bem! — lá no mais fundo,
forte e imarcescível sob os golpes
resiste a minha força verdadeira.
E o poema sempre novo no meu sangue
conhece também sua glória de aço
que vê sem dor as pobres farsas
e os caminhos cruéis em que me perco.
Veio da luz inutilizando os laços
armados no caminho à minha espera,
mão de ferro erguendo-se dos limbos
e mandando-me fitar o sol em face!
Adolfo Casais
Monteiro
segunda-feira, 26 de outubro de 2020
POSTAIS SEM SELO
Quando alguém
pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro.
QUOTIDIANOS
Sempre fui uma
defensora do comércio local.
Há uns 10 anos que,
dois prédios ao lado daquele onde vivo, existe uma pequena frutaria em que
trabalha um casal de jovens nepaleses.
Gente de uma simpatia
sufocante, de uma amabilidade que só se aprende na dura vida que se leva.
Antes da pandemia
abriam às 08,00 horas e fechavam sempres depois das 22,00 horas e nunca
fechavam aos sábados nem aos domingos.
Um dia falei-lhes do
trabalho duro que despendiam, calmamente, com um sorriso nos lábios, disseram
que tinham deixado o Nepal para trabalharem, apenas para isso, e que aguardavam
o dia de voltarem em condições diferentes daquelas com que partiram.
Hoje estão fechados, é a festa do país, e
deixaram um delicioso aviso aos seus clientes e em que pedem desculpa pelo
incómodo.
Em momentos
complicados, por exemplo, falta salsa para colorir as pataniscas de bacalhau, sei
sempre que há a forte possibilidade que os «miúdos» nos desenrasquem.
Serei sempre uma
defensora do comércio local, muito mais ainda nos tempos de pandemia que
correm, em que as idas às grandes superfícies são um risco.
Aliás, tudo hoje em dia é um risco!
Texto e fotografia de
Aida Santos
AS PÁGINAS DOS ROMANCES
Arriscávamos o salto mortal
voando com uma venda nos olhos
dos andaimes para o monte de areia da póvoa.
As obras da escola eram a nossa perdição:
as fasquias de alumínio, o ondulado de luzalite
das coberturas, o entulho, o ressalto
exacto do encaixe das tijoleiras, o pó quase de talco
dos sacos de cimento da cimpor. Nos sábados
à tarde erguíamos muros no combarro com tijolo
de quinze, marcávamos com estacas de pinho
o perímetro exterior do pavilhão, ligavamos a betoneira
a olhar em sobressalto os movimentos oscilatórios
do balde. Penso que era assim. Às vezes
pergunto o que fica dos livros, o que pertence
e não pertence à literatura, o que acrescentaram
à nossa vida as páginas dos romances.
José Carlos Barros
domingo, 25 de outubro de 2020
POSTAIS SEM SELO
Bebe vinho, ele te
devolverá a mocidade, a divina estação das rosas, da vida eterna, dos amigos
sinceros. Bebe, e desfruta o instante fugidio que é a tua vida.
ANTOLOGIA DO CAIS
Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.
DIAS COMUNS
Como não compro livros em hipermercados, fnacs e outras variantes, apenas em livrarias, só no sábado tive a possibilidade de comprar o VII Volume dos Dias Comuns do José Gomes Ferreira.
Apercebi-me, então, que ainda não colocara, por aqui,
nenhuma capa destes diários.
Apressei-me, no domingo a colocar a do I Volume e ontem a do agora saído VII Volume.
Desejaria que estes meus Diários, pertencentes como as
restantes minhas obras à minha mulher e filhos, fossem publicados na íntegra.
Antes da publicação gostaria contudo que consultassem
os meus amigos mais íntimos para qualquer amputação ou disfarce (a substituição
pelas iniciais de alguns nomes, por exemplo).
Exijo entanto que sejam sempre consultados o Carlos de
Oliveira e o Alexandre Pinheiro Torres.
Lisboa, 7 de Março de 1976.
Imprimam sempre esta sentença no princípio de todos os
meus diários:
Àqueles que podendo, por ter sido mal informado, peço
que me perdoem e continuem a sorrir para a imagem.
Textos inestimáveis a trazer-nos de volta a memória de um Portugal amordaçado, amesquinhado. Pobre País no qual, apesar de tudo, José Gomes Ferreira acreditava.
Texto publicado em 14 de Abril de 2015
sábado, 24 de outubro de 2020
POSTAIS SEM SELO
Conseguem imaginar a velhice? É claro que não. Eu não
conseguia. Não era capaz. Não fazia a mínima ideia de como era. Não tinha
sequer uma falsa ideia – não tinha imagem nenhuma. E ninguém quer outra coisa
qualquer. Ninguém quer enfrentar nada disto antes de ter outro remédio. Como
vai ser? O embotamento é de rigueur.
ANTOLOGIA DO CAIS
Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar
alguns textos que por aqui foram sendo publicados.
RELACIONADOS
Ao longe, a morte acena a Sam Shepard e ele fica com o entendimento que os seus leitores, ele próprio, merecem um último olhar sobre tabernas de cidades de fronteira ou perdidas no meio do deserto, terras de apaches e saguaros, sonhos e desventuras, olhar o céu, senti-lo perto de si, adormecer e acordar ao som do cântico dos tordos, uma espécie de melancolia, deitado à espera que alguém o encontre, algo de muito seu que lhe faça companhia na última viagem.
«Há alturas em que não posso deixar de pensar no
passado. Sei que o presente é o lugar para se estar. Sei que me foi recomendado
por pessoas muito sensatas que permanecesse no presente o mais possível, mas o
passado apresenta-se. O passado não vem como um todo. Vem sempre em partes.»
Sam Shepard começou a pensar no livro no ano de 2016.
Escreveu-o depois em rascunhos manuscritos já que a esclerose lateral amiotrófica que o atacou, impedia-o de dactilografar. Quando já não conseguia escrever à mão, passou a gravar os textos e os filhos faziam a transcrição para papel.
Patti Smith, amiga e antiga companheira, apoiou-o na
edição do manuscrito, quem mais o poderia fazer, ela que é uma eterna
frequentadora de sombras, fragilidades várias, visões de cemitérios perdidos
pelos mundos?
Texto publicado em 29 de Outubro de 2018.
sexta-feira, 23 de outubro de 2020
POSTAIS SEM SELO
Ser cristão é um risco, ser humano é um grande risco.
José Tolentino Mendonça
ENGOLIDO POR UMA BALEIA
O escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez, autor de dois romances que ficarão para sempre na História da Literatura – Cem Anos de Solidão e O Amor nos Tempos de Cólera -, explicou, um dia, a origem da ficção: «A ficção foi inventada no dia em que Jonas regressou a casa e contou à mulher que chegou com três dias de atraso por ter sido engolido por uma baleia.»
João Tordo em Manual de Sobrevivência de Um Escritor.
Carrossel
Não enxergas. Quer dizer, olhas para isto
e não vês
nada. Em rigor a manhã só desperta com o gesto
de um miúdo. Estender o braço e fazer pontaria.
Há quanto tempo está ali, a observar-te?
À volta de toda a praça, o grande carrossel gira,
o grande ciclo da vida, a morte e o renascimento.
Vozes desconhecidas ecoam por todo o lado, palavras
que se transmitem de uma geração para outra.
Pois bem, o balanço do mar largo continua.
Não te deixes enganar pela harmonia da calçada.
Hoje é dia das mentiras, és capaz de ter razão.
Vítor Nogueira em Resumo: a poesia em 2009
quinta-feira, 22 de outubro de 2020
PODEMOS CONFIAR NOS HOSPITAIS PRIVADOS?
Já se esqueceram que, logo em março, muitos hospitais privados começaram a cobrar aos utentes das consultas mais simples uma abusiva "taxa Covid" de 10 a 20 euros, que podia ir às centenas de euros no caso de uma cirurgia? E isto até para pagar equipamentos de proteção, banais e baratos, como máscaras e gel?
Já se esqueceram que
vários hospitais privados decidiram suspender as convenções com o Estado, no período de março a
abril, a até então fase mais difícil da pandemia do novo coronavírus, deixando
de dar apoio ao Serviço Nacional de Saúde quando este mais precisava?
Já se esqueceram que,
em setembro, foi notícia o facto dos hospitais privados recusarem fazer partos a grávidas com COVID, sem terem
avisado disso as mães que, durante a fase de acompanhamento da gravidez, iam lá
às consultas médicas?
Já se esqueceram que
no mês passado a Entidade Reguladora da Saúde teve de emitir um
comunicado, depois de receber várias queixas de utentes, a pedir aos hospitais
privados que recusam doentes com COVID-19 para avisarem antecipadamente os
utentes dessa decisão?
É totalmente
verdadeira a acusação de pessoas de direita a pessoas da esquerda de estas
defenderem o Serviço Nacional de Saúde por motivos ideológicos - o
pensamento de que o acesso a tratamentos médicos deve ser gratuito e de
qualidade idêntica para pobres e ricos condiciona a abordagem que qualquer
pessoa verdadeiramente de esquerda faz a este problema. Por mim, que sou de
esquerda, ainda bem que é assim.
Mas também é
totalmente verdadeira a acusação inversa: a de que as pessoas de direita
defendem por motivos ideológicos o favorecimento dos hospitais privados, mesmo
quando muitos deles defraudam clamorosamente, recorrentemente e gananciosamente
os seus clientes, o seu dever de responsabilidade social, a pureza da ética
médica. É o que está a acontecer com a operação "salvem os hospitais
privados" em curso.
O comunicado da
semana passada assinado pelo bastonário e ex-bastonários da Ordem dos
Médicos vai muito bem até ao parágrafo sete (a pressão sobre o Governo para
que garanta um Serviço Nacional de Saúde superlativo deve, até, ser
permanente, não limitada aos tempos de crise) mas, depois disso, atira-se ao
alarmismo para acabar a defender que "os setores de saúde sociais e
privados devem ser mais envolvidos no esforço covid e não-covid para que a
capacidade instalada seja efetivamente usada em vez de desperdiçada".
Em primeiro lugar,
tal afirmação, para ser eticamente irrepreensível, deveria ser acompanhada por
uma declaração de interesses de cada um dos seis bastonários subscritores do
texto sobre as suas ligações à medicina privada - e aparentemente (basta uma
busca na Internet para o comprovar) todos têm essa ligação, desde o nível
básico de dar consultas num hospital ou num consultório privado, até ao mais complexo
de ter o seu nome como marca de uma rede de laboratórios.
Em segundo lugar, a
afirmação dos bastonários ignora uma questão de fiabilidade, dado o
comportamento desolador, largamente documentado, dos hospitais privados assim
que começou a pandemia: poderemos confiar neles para nos ajudarem nesta segunda
fase da doença?
Em terceiro lugar, há
a conta do contribuinte: no final do dia sai mais barato
ao Estado pagar a privados para prestarem serviço público ou a gastar
dinheiro em reforço dos seus meios humanos e técnicos? Ao longo de décadas
inúmeros relatórios do Tribunal de Contas põem largas dúvidas sobre a
vantagem da relação Estado-privados na Saúde.
E vou ignorar neste
artigo a questão da corrupção, seja a puramente criminal, seja a
institucionalizada e aceite como "normal" e até
"recomendável", que as várias vertentes do negócio da Saúde no século
XXI comportam: desde os preços dos medicamentos impostos pelos grandes
conglomerados da indústria farmacêutica até à promiscuidade do exercício
profissional da medicina, simultaneamente, no setor público e privado.
Acho aliás bastante
graça ao facto de o texto dos bastonários referir muito o SNS, limitando-se ao
equívoco da sigla, sem nunca explicar se se refere ao Serviço Nacional de
Saúde ou se utiliza a "novilíngua" que a direita inventou para
privatizar, na mente das pessoas, a prestação pública de cuidados de
saúde: Sistema Nacional de Saúde.
O texto dos
bastonários serviu de pretexto para o Presidente da República dar uma
finta ao governo e iniciar uma série de audiências ao atual e aos
ex-bastonários da Ordem dos Médicos, a outros bastonários das áreas
ligadas à saúde, a ex-ministros da saúde, a sindicatos, a confederações
sindicais e patronais, à própria ministra da Saúde - e adivinho a conclusão
do Presidente ir coincidir, quase na íntegra, com as teses dos
bastonários.
Simultaneamente, no
Parlamento, a esquerda tenta convencer o Governo a reforçar mais do que o
previsto o investimento no Serviço Nacional de Saúde - e aqui está,
palpita-me, o busílis da questão: com os novos fundos europeus que estão
prometidos, o que se passa, de facto, não é uma guerra para melhorar o
atendimento dos doentes, é a conquista para os privados da maior fatia possível
desse bolo.
Obviamente que se for
necessário usar os hospitais privados para salvar vidas a pessoas se deve
fazê-lo, e já. Mas transformar isso num instrumento para voltar a enfraquecer
o Serviço Nacional de Saúde - fazendo com que no pós-pandemia ele
dependa mais da "ajuda" privada - não é aceitável. Por motivos
ideológicos, sim, mas sobretudo, como se tem visto, porque não se pode confiar
neles.
Pedro Tadeu no Diário de Notícias on-line
PERGUNTAS
Tenho sempre, na algibeira da noite,
algumas vigorosas perguntas de reserva,
prontas a disparar em legítima defesa
contra o negrume.
Algumas são pequeninas, vulgares
aspectos de pormenor.
Outras, pelo contrário, são enormes,
desabridas como a boca dum forno --
do género, porque é que deste quatro,
e não seis, ou oito, pernas à rã.
Hoje ocorre-me fazer a menor de todas:
se foste tu que fabricaste o tempo
e a ele nos acorrentaste?
e com que barro? e com que raio
de segunda intenção?
Se é que não foi apenas por descuido.
Ou até casualmente, como acontece às vezes
ao cientista que faz experiências
e acaba por descobrir seja o que for.
A.M. Pires Cabral em resumo: a poesia em 2010
quarta-feira, 21 de outubro de 2020
POSTAIS SEM SELO
A serenidade é a maior virtude da inteligência.