sábado, 19 de março de 2022

EM NOME DOS ADJECTIVOS


Um capítulo do seu interessantíssimo Século Passado, um livro tão ignorado por críticos – há crítica de livros? – também por leitores, chama-se Mesmo Agora Que Anoitece e por lá existe uma crónica que Jorge Silva Melo publicou mo saudoso Mil Folhas do Público de 20 de Janeiro de 2001. Começa assim:

«Têm má fama os adjectivos. Incitados a não os usar à toa, os jornalistas abrem um leque restrito que muda como os stocks da Zara.»

Mais a meio há este delicioso pedacinho:

«Teria eu lido o Gatsby, se Fitzgerald não lhe tivesse aposto o Great?Enseada, se não me perguntasse por que é que Abelaira lhe chama Amena? O Anjo, não fosse ele Ancorado? As Palavras, não as anunciasse Maria Judite como Poupadas? O Dia, não o pintasse Mário Dionísio de Cinzento? Como veria eu o mundo da colonização se Shakespeare não o entrevisse "admirável" (brave) e "novo" (new)? Teria eu sido tingido pela soturnidade e pela melancolia de Lisboa/Cesário se o desejo de sofrer não fosse subitamente absurdo? Teria ultrapassado o primeiro parágrafo de Moby Dick sem o damp, drizzly November in my soul ("desperta na minha alma um Novembro brumoso e húmido" na tradução de Alfredo Margarido)? Andaria eu de Gomes Leal no bolso sem o Bela, dizia eu, fria como o luar / sobre o dorso luzente e excepcional dum peixe?

O que fazem estes adjectivos raros, justapostos, cruzados, intrigantes? Atrasam a narrativa, demoram o pensar, fazem cair sobre as coisas ou a acção a poeira da incerteza. Não serão, assim benvindos ao mundo da notícia, que se publicita mundo de contagem de caracteres, impessoal, sem voz. Sem o desequilíbrio destas pobres palavras, o que seria da literatura.

Ai, não fosse Furioso o Orlando!

4 comentários:

Seve disse...

Ontem fui à FNAC e à Bertrand e perguntei se tinham algum livro do Jorge Silva Melo - em ambas a mesma ignorância...quem? quem? é escritor? é político? vamos lá ver ao computador - não, não temos nada.
OK, que não tenham nem saibam minimamente quem foi nem tenham ouvido falar em tal nome, mas é assustador a ignorância destes funcionários e o que mais me faz confusão e até dói) é que nem curiosidade têm de saber quem terá sido, é realmente confrangedor tanta ignorância e sem a mínima vontade de aprender.

Claro que certamente estarão mal pagos e desmotivados mas nem um pingo de curiosidade...

Sammy, o paquete disse...

Já não sei que diga sobre as livrarias destes blocos editoriais que não sabem rigorosamente o que é um livro. Os trabalhadores que eles colocam à frente dos computadores dessas lojas são pagos miseravelmente, horários quase de escravatura. Claro que poderiam ter um pouco mais de interesse pelo trabalho que têm de executar, mas não é isso que acontece.
Ando à procura de uma antologia do Eduardo Guerra Carneiro editada pela Língua Morta. Em tempos dirigi-me à Bertrand e à Leya a perguntar pelo livro. De imediato me responderam que não recebiam livros de pequenas editoras. Há semanas passei ela Livraria Almedina no Saldanha e perguntei pelo livro. Não tinham, mas o trabalhador que me atendeu, teve o cuidado de me dizer que, possivelmente, o poderia encontrar na «Letra Livre» e, gentilmente deu-me a morada e o número de telefone: Calçada do Combro nº 139 – Telefone 213461075.
Como não tenho telemóvel, desloquei-me à loja, debaixo daquela chuva que hoje caiu sobre Lisboa. Não o tinham na loja mas o jovem que me atendeu de imediato disse que ainda existiam dois exemplares no armazém e que amanhã ou depois o mais tardar, estaria ao meu dispor.
O Seve se fizer um telefonema para a Letra Livre, para além de editora, livraria, também é alfarrabista, pode ser que tenham algum exemplar. Se não tiverem irão à procura e talvez encontrem algum livro do Jorge Silva Melo.
Depois, conte-nos a história do que aconteceu.

Seve disse...

Obrigado caro Sammy!
Todavia, não será minha intenção ir propositadamente à procura do livro, mas, nas minhas deambulações (assíduas) por livrarias e/ou alfarrabistas não deixarei de o procurar.
Darei, naturalmente, notícias sobre o assunto, se fôr caso disso.
Abraço

Seve disse...

uma rectificação:

for não é acentuada, ao contrário de pôr, que tem de se distinguir de da prep. "por"