quarta-feira, 6 de maio de 2015

OLHAR AS CAPAS


Lixo

Eduardo Guerra Carneiro
Capa: Carlos Ferreiro
& etc, Lisboa, Outubro 1993

Há nomes de luxo onde o lixo
arde — bouças chamejantes.
Medo é a palavra exacta nas travessas
quando bandos circulam protegidos
pela finança alta e licenciada.
Se ele diz que há cavalos e cães
e fala dos doutores, esquecem
que no fundo era o mercado.
O país ergue-se em peões e os baldios
em chamas. Volta ao restolhar do milho
e camponeses dizem da lavoura,
da fome e da calúnia. Basta
olhar os murais onde esse luxo
se transformou no lixo capital.

A canalha junta-se nos pátios
no lusco-fusco de alguns entardeceres.
Galinhas debicam, entre caliça e cimento,
nos torrões onde pode estar semente ou grão.
O bolor cresce, com a humidade, em caixotões
encostados, a esmo, pelos cantos. A canalha
canta nos lugares — nódoas de vinho
e sangue misturados. O ódio ressuma
das frinchas dos tabiques. Na lama
desses pátios surgem flores carnívoras,
alimentadas a grogue e lavadura.
Crioula é a voz, a desmaiar no violão
e o azul ultramarino invade a cantina.
A hora do lobo ainda junta essa canalha.

Não penses que a canalha é lixo.
Nunca o foi. Na secura das terras,
fouce a fouce, ergue as colheitas
dos teus alimentos. Não julgues a canalha
o bode expiatório destes dramas. Lumpen
é quase luz noutra reforma dita
dura. Ouve as sirenes da polícia
e as ambulâncias solenes da morte.
Entre os espelhos quebrados dessas lojas
estão os focos do incêndio dos costumes.
Alarma-te: metrópoles em pânico
estão a arder. Não penses que o lixo
é só ao lado. Eis que ele se aproxima,
raia a raia.

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