Carta de António José
Saraiva, Paris Maio de 1969, para Óscar Lopes:
Li o teu artigo do (Mário)
Sacramento, e o simples aparecimento dele em letra de forma mostra como ss
coisas aí mudaram de Setembro para cá. O Sacramento é um exemplo muito típico
do comportamento dos intelectuais em Portugal, mas pergunto a mim mesmo em que
medida esse comportamento deve ser erigido em regra geral. Sem dúvida que os
intelectuais não podem alhear-se do destino colectivo, mas talvez isso não
implique que eles devam desempenhar um papel que prejudique a realização da sua
vocação específica. Escrever um ensaio ou um romance ou realizar uma
investigação pode ser muito mais importante do que participar numa comissão,
até porque ao nível da criação científica, filosófica, ou estética se podem pôr
problemas que não cabem no dia a dia dos compromissos, das declarações e das
tácticas.
O problema, reconheço, não é simples, até porque a nossa elaboração
teórica é feita da substância da nossa vida prática e quotidiana. Mas nem toda
a prática é política: há problemas de relação com nós mesmos, de relação com o
nosso próximo e de relação com isso a que se chama «Deus» (que talvez seja só o
limite matemático do Eu, lá onde ele não é só um Eu individual) que não se
podem pôr facilmente em termos «políticos» e que no entanto exigem expressão e
realização. O teu ideal de uma concretização permanente das nossas aspirações
mais fundas em termos de atitudes práticas não cabe evidentemente em congressos
e reuniões.
E, alguns intelectuais portugueses parece-me evidente que esse
empenhamento, nos termos em que se faz, leva a uma amputação das virtualidades intelectuais
e à simplificação fanatizante dos problemas. O (António) Sérgio escapou a isso
porque recusou sempre arregimentar-se e porque apresentou as suas atitudes como
a manifestação de um dever moral que estava muito acima da prática.
Legenda: Mário
Sacramento
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