Limiar dos Pássaros
Eugénio de Andrade
Capa: Armando Alves
Limiar, Porto,
Setembro de 1976
Nada sabia de marés, com algumas partias, com outras regressavas. Um
dia, já há muito, deixei de te ver. Disseram-me que morreste, e que foste meu pai.
É capaz de ser verdade, e ultimamente tenho imaginado como terias morrido.
Espero que tenha sido sobre os teus olhos, que foram muito belos, que a morte
haja começado com rigor o seu ofício. Era neles que incidia o meu desejo.
Quando penso em ti, vejo-te de órbitas vazias, um sangue escuro invadindo-te a
boca. Apodreces como toda a gente, só um pouco mais de lado, porque a morte
deve ter prosseguido o seu trabalho sobre o coração. Que procurava ela quando o
levou à boca? Está agora sobre o centro do teu ser, aí refocila
voluptuosamente, crava os dentes até arrancar os teus mais viris ornamentos e
cuspir-tos na cara. Foi pena que já não pudesses ouvir as suas gargalhadas ao
longo do corredor.
Onde me espera.
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