Não deve perder a esperança, Suponho que essa já está perdida, qualquer
dia sou capaz de ir a Fátima para ver se a fé ainda pode salvar-me. Tem fé, Sou
católica, Praticante, Sim, vou à missa, confesso-me, comungo, faço tudo o que
os católicos fazem. Não parece muito convicta, É jeito meu, não pôr muita
expressão no que digo. A isto não respondeu Ricardo Reis, as frases, quando ditas,
são como portas, ficam abertas, quase sempre entramos, mas às vezes deixamo-nos
estar do lado de fora, à espera de que outra porta se abra, de que outra frase
se diga, por exemplo esta, que pode servir, Peço-lhe que desculpe o meu pai, e,
resultado das eleições em Espanha tem-no trazido nervoso, ontem só falou com
pessoas que vieram fugidas de lá, e ainda por cima o Salvador foi-lhe logo
dizer que o doutor Reis tinha sido chamado à polícia, Mal nos conhecemos, seu
pai nada me fez por que eu deva desculpá-lo, de resto, o caso não terá qualquer
importância, segunda-feira vou saber o que me querem, responderei ao que me
perguntarem, nada mais, Ainda bem que não está preocupado, Não há motivo, não
tenho nada que ver com a política, vivi todos estes anos no Brasil, nunca fui
inquietado lá, aqui menos razões ainda há para me inquietarem, para lhe falar
francamente nem já me sinto português, Querendo Deus tudo irá correr bem, Deus
não haveria de gostar de saber que nós acreditamos que as coisas correm mal porque
ele não quis que elas corressem bem, São maneiras de dizer, ouvimo-las e
repetimo-las, sem pensar, dizemos Deus queira, só as palavras, provavelmente
ninguém é capaz de representar na sua cabeça Deus e a vontade de Deus, vai ter
de me perdoar esta petulância, quem sou eu para falar assim, É como viver,
nascemos, vemos os outros a viverem, pomo-nos a viver também, a imitá-los, sem
sabermos porquê nem para quê, É tão triste o que está a dizer, Peço-lhe
desculpa, hoje não estou a ajudá-la, esqueci-me das minhas obrigações de
médico, devia era agradecer-lhe ter aqui vindo para emendar a atitude do seu
pai, Principalmente, vim porque queria vê-lo e falar-lhe, amanhã voltamos para
Coimbra, tive medo de não arranjar outra oportunidade, O vento começou a soprar
com mais força, agasalhe-se bem, Não se preocupe comigo, eu é que escolhi mal o
sítio para nos encontrarmos, devia ter-me lembrado de que esteve doente, de
cama, Uma gripe sem complicações, ou nem isso, um resfriamento, Só volto a
Lisboa daqui por um mês, como é costume, vou ficar sem saber o que acontecerá
na segunda-feira, Já lhe disse que não tem importância, Mesmo assim, gostaria
de saber.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
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