Fechara-se a noite quando Ricardo Reis saiu. Jantou na Rua dos
Correeiros, num restaurante de sobreloja, de tecto baixo, sozinho entre homens
que estavam sozinhos, quem seriam, que vidas teriam, atraídos porquê a este
lugar, mastigando o bacalhau ou a pescada cozida, o bife com batatas, quase
todos servindo-se de vinho tinto, mais compostos de traje que de modos, batendo
no copo para chamar o criado, palitando com esforço e volúpia dente por dente
ou retirando com a pinça formada pelos dedos polegar e indicador o filamento, a
fibra renitente, um que outro arrotando, folgando o cinto, desabotoando o
colete, aliviando os suspensórios. Ricardo Reis pensou, Agora todas as minhas
refeições serão assim, este barulho de talheres, estas vozes de criados dizendo
para dentro Uma sopa, ou Meia de chocos, maneira abreviada de encomendar meia
porção, 133 estas vozes são baças, a atmosfera lúgubre, no prato frio a gordura
coalha, não foi ainda levantada a mesa ao lado, há nódoas de vinho na toalha,
restos de pão, um cigarro mal apagado, ah como é diferente a vida no Hotel
Bragança, mesmo não sendo de primeira classe, Ricardo Reis sente uma violenta
saudade de Ramón, a quem não obstante tornará a ver no dia seguinte, hoje é
quinta-feira, só sairá no sábado. Sabe porém Ricardo Reis o que saudades destas
costumam valer, tudo vai é dos hábitos, o hábito que se perde, o hábito que se
ganha, está há tão pouco tempo em Lisboa, menos de três meses, e já o Rio de
Janeiro lhe parece uma lembrança de um passado antigo, talvez doutra vida, não
a sua, outra das inúmeras, e, assim pensando, admite que a esta mesma hora
esteja Ricardo Reis jantando também no Porto, ou no Rio de Janeiro almoçando,
senão em qualquer outro lugar da terra, se a dispersão foi tão longe. Em todo o
dia não chovera, pôde fazer as suas compras com todo o sossego, sossegadamente
está agora regressando ao hotel, quando lá chegar dirá a Salvador que sai no
sábado, nada mais simples, saio no sábado, mas sente-se como o adolescente a
quem, por se recusar o pai a dar-lhe a chave da casa, ousa tomá-la por suas
mãos, fiando-se da força que costumam ter os factos consumados.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
Sem comentários:
Enviar um comentário