O senhor Salvador fará o favor de tirar a minha conta, só fico no hotel
até sábado, e tendo dito assim, com esta secura, logo se arrependeu, porque
Salvador era a verdadeira imagem da surpresa magoada, vítima de uma
deslealdade, ali com a chave na mão, não se trata assim um gerente que tão bom
amigo se tem mostrado, o que deveriam ter feito era 134 chamarem-no de parte,
Olhe, senhor Salvador, eu bem não queria, desculpe, mas não, os hóspedes são
todos uns ingratos e este o pior de todos, que aqui veio dar à costa, sempre
bem tratado apesar de se ter metido aí com uma criada, outro eu fosse e
tinha-os posto na rua, a ele e a ela, ou queixava-me à polícia, bem me preveniu
o Victor, mas este meu bom coração, toda a gente abusa de mim, ah, mas juro que
é a última vez que me apanham. Se os segundos e minutos fossem todos iguais,
como os vemos traçados nos relógios, nem sempre teríamos tempo para explicar o
que dentro deles se passa, o miolo que contêm, o que nos vale é que os
episódios de mais extensa significação calham a dar-se nos segundos compridos e
nos minutos longos, por isso é possível debater com demora e pormenor certos
casos, sem infracção escandalosa da mais subtil das três unidades dramáticas,
que é, precisamente, o tempo. Num gesto vagaroso, Salvador entregou a chave,
deu ao rosto uma expressão digna, falou em tom pausado, paternal, Espero que
não seja por ter o nosso serviço desagradado em alguma coisa ao senhor doutor,
e estas modestas e profissionais palavras comportam perigo de suscitar um
equívoco, pela acerba ironia que facilmente encontraríamos nelas, se nos
lembrarmos de Lídia, mas não, neste momento Salvador só quer exprimir a
decepção, a mágoa, De modo algum, senhor Salvador, protestou com veemência
Ricardo Reis, pelo contrário, o que acontece é que arranjei casa, resolvi ficar
de vez em Lisboa, uma pessoa precisa de ter o seu próprio canto para viver, Ah,
arranjou casa, então, se quiser, empresto-lhe o Pimenta para o ajudar a
transportar as suas malas, se é era Lisboa, claro, É, é em Lisboa, mas eu
tratarei disso, muito obrigado, qualquer moço de fretes as leva. O Pimenta,
superiormente autorizado pela oferta liberal dos seus serviços, curioso por
conta própria e adivinhando a curiosidade de Salvador, para onde será que ele
vai morar, permitiu-se a confiança de insistir, Para que há-de estar o senhor
doutor a pagar a um moço, eu levo as malas, Não, Pimenta, muito obrigado, e,
para prevenir outras insistências, Ricardo Reis fez adiantadamente o seu
pequeno discurso de despedida, Quero dizer-lhe, senhor Salvador, que levo as
melhores recordações do seu hotel, onde sempre fui muito bem tratado, onde
sempre me senti como em minha própria casa, rodeado de cuidados e atenções
inexcedíveis, e agradeço a todo o pessoal, sem excepção, o carinhoso ambiente
de que me rodearam neste meu regresso à pátria, donde já não penso sair, a
todos muito obrigado, não estavam ali todos, mas para o caso tanto fazia,
discurso como este não o tornaria Ricardo Reis a fazer, tão ridículo se sentira
enquanto falava, e, pior do que ridículo, usando involuntariamente palavras que
bem poderiam ter acordado pensamentos sarcásticos nos seus ouvintes, era
impossível que não tivessem pensado em Lídia quando ele próprio falava de
cuidados, carinhos e atenções, por que será que as palavras se servem tantas
vezes de nós, vemo-las a aproximarem-se, a ameaçarem, e não somos capazes de afastá-las,
de calá-las, e assim acabamos por dizer o que não queríamos, é como o abismo
irresistível, vamos cair e avançamos. Em poucas palavras retribuiu Salvador,
nem precisaria, bastava-lhe por sua vez agradecer a honra de terem tido o
doutor Ricardo Reis como hóspede, Não fizemos mais do que o nosso dever, eu e
todo o pessoal iremos ter saudades do senhor doutor, não é verdade, ó Pimenta,
com esta súbita pergunta desfez-se a solenidade do momento, parecia que apelava
para a expressão de um sentimento unânime, e era o contrário disso, um piscar
de olhos enfim malicioso, não sei se me estás a entender. Ricardo Reis
entendeu, disse Boa noite, e subiu para o quarto, adivinhando que ficavam a
falar nas suas costas, a dizer mal dele, e já pronunciando o nome de Lídia, que
mais seria, o que não supunha é que fosse isto, Hás-de ver, depois de amanhã,
quem é o moço de fretes, quero saber para onde é que ele se muda.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
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