sábado, 28 de julho de 2018

TER O SEU PRÓPRIO CANTO PARA VIVER


O senhor Salvador fará o favor de tirar a minha conta, só fico no hotel até sábado, e tendo dito assim, com esta secura, logo se arrependeu, porque Salvador era a verdadeira imagem da surpresa magoada, vítima de uma deslealdade, ali com a chave na mão, não se trata assim um gerente que tão bom amigo se tem mostrado, o que deveriam ter feito era 134 chamarem-no de parte, Olhe, senhor Salvador, eu bem não queria, desculpe, mas não, os hóspedes são todos uns ingratos e este o pior de todos, que aqui veio dar à costa, sempre bem tratado apesar de se ter metido aí com uma criada, outro eu fosse e tinha-os posto na rua, a ele e a ela, ou queixava-me à polícia, bem me preveniu o Victor, mas este meu bom coração, toda a gente abusa de mim, ah, mas juro que é a última vez que me apanham. Se os segundos e minutos fossem todos iguais, como os vemos traçados nos relógios, nem sempre teríamos tempo para explicar o que dentro deles se passa, o miolo que contêm, o que nos vale é que os episódios de mais extensa significação calham a dar-se nos segundos compridos e nos minutos longos, por isso é possível debater com demora e pormenor certos casos, sem infracção escandalosa da mais subtil das três unidades dramáticas, que é, precisamente, o tempo. Num gesto vagaroso, Salvador entregou a chave, deu ao rosto uma expressão digna, falou em tom pausado, paternal, Espero que não seja por ter o nosso serviço desagradado em alguma coisa ao senhor doutor, e estas modestas e profissionais palavras comportam perigo de suscitar um equívoco, pela acerba ironia que facilmente encontraríamos nelas, se nos lembrarmos de Lídia, mas não, neste momento Salvador só quer exprimir a decepção, a mágoa, De modo algum, senhor Salvador, protestou com veemência Ricardo Reis, pelo contrário, o que acontece é que arranjei casa, resolvi ficar de vez em Lisboa, uma pessoa precisa de ter o seu próprio canto para viver, Ah, arranjou casa, então, se quiser, empresto-lhe o Pimenta para o ajudar a transportar as suas malas, se é era Lisboa, claro, É, é em Lisboa, mas eu tratarei disso, muito obrigado, qualquer moço de fretes as leva. O Pimenta, superiormente autorizado pela oferta liberal dos seus serviços, curioso por conta própria e adivinhando a curiosidade de Salvador, para onde será que ele vai morar, permitiu-se a confiança de insistir, Para que há-de estar o senhor doutor a pagar a um moço, eu levo as malas, Não, Pimenta, muito obrigado, e, para prevenir outras insistências, Ricardo Reis fez adiantadamente o seu pequeno discurso de despedida, Quero dizer-lhe, senhor Salvador, que levo as melhores recordações do seu hotel, onde sempre fui muito bem tratado, onde sempre me senti como em minha própria casa, rodeado de cuidados e atenções inexcedíveis, e agradeço a todo o pessoal, sem excepção, o carinhoso ambiente de que me rodearam neste meu regresso à pátria, donde já não penso sair, a todos muito obrigado, não estavam ali todos, mas para o caso tanto fazia, discurso como este não o tornaria Ricardo Reis a fazer, tão ridículo se sentira enquanto falava, e, pior do que ridículo, usando involuntariamente palavras que bem poderiam ter acordado pensamentos sarcásticos nos seus ouvintes, era impossível que não tivessem pensado em Lídia quando ele próprio falava de cuidados, carinhos e atenções, por que será que as palavras se servem tantas vezes de nós, vemo-las a aproximarem-se, a ameaçarem, e não somos capazes de afastá-las, de calá-las, e assim acabamos por dizer o que não queríamos, é como o abismo irresistível, vamos cair e avançamos. Em poucas palavras retribuiu Salvador, nem precisaria, bastava-lhe por sua vez agradecer a honra de terem tido o doutor Ricardo Reis como hóspede, Não fizemos mais do que o nosso dever, eu e todo o pessoal iremos ter saudades do senhor doutor, não é verdade, ó Pimenta, com esta súbita pergunta desfez-se a solenidade do momento, parecia que apelava para a expressão de um sentimento unânime, e era o contrário disso, um piscar de olhos enfim malicioso, não sei se me estás a entender. Ricardo Reis entendeu, disse Boa noite, e subiu para o quarto, adivinhando que ficavam a falar nas suas costas, a dizer mal dele, e já pronunciando o nome de Lídia, que mais seria, o que não supunha é que fosse isto, Hás-de ver, depois de amanhã, quem é o moço de fretes, quero saber para onde é que ele se muda.

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