quinta-feira, 19 de julho de 2018

PROTOPOEMA


Do novelo emaranhado da memória, da escuridão
 dos nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça
entre os dedos. É um fio longo, verde e azul, com
cheiro de limos, e tem a macieza quente do lodo
vivo. É um rio. Corre-me nas mãos, agora
molhadas. Toda a água me passa entre as palmas
abertas, e de repente não sei se as águas nascem
 de mim, ou para mim fluem. Continuo a puxar, não
já memória apenas, mas o próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também
os barcos e o céu que os cobre e os altos
choupos que vagarosamente deslizam sobre
a película luminosa dos olhos. Nadam-me peixes
 no sangue e oscilam entre duas águas como os apelos
imprecisos da memória. Sinto a força dos braços
 e a vara que os prolonga. Ao fundo do rio e de
mim, desce como um lento e firme pulsar
de coração. Agora o céu está mais perto e mudou de
cor. É todo ele verde e sonoro porque de ramo em
ramo  o vento acorda o canto das aves. E quando
num largo espaço o barco se detém, o meu corpo
despido brilha debaixo do sol, entre o esplendor
maior que acende a superfície das águas. Aí se
fundem numa só verdade as lembranças confusas da
memória e o vulto sùbitamente anunciado
do futuro. Uma ave sem nome desce donde não sei e
vai pousar calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul
e que as aves digam nos ramos por que são altos
os choupos e rumorosas as suas folhas. Então,
corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas
verticais circundam. Aí, três palmos enterrarei
 a minha vara até à pedra viva. Haverá o grande
silêncio primordial quando as mãos se juntarem
 às mãos. Depois saberei tudo.

José Saramago em Provavelmente Alegria

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