Como se poderia
desfazer em mim a tua nobre cabeça, essa
torre deslumbrada
pelo mudo calor dos dias, pelo
brilhante gelo
nocturno? É pela cabeça
que os mortos maravilhosamente
pesam
no nosso
coração. Essas flores intangíveis para as quais
temos medo de sorrir,
as armas
lavradas, as liras
que estremecem e pendem
sobre os rios
agitados das coisas. Só o amor as abre
e vê sua confusa e
grave geografia, as fontes
livres de onde os
pensamentos crescem
como a folhagem
iluminada das antigas idades
do ouro.
Eu próprio levanto
minha exígua cabeça de vivo,
procuro colocar-me
num ponto irradiante
da terra, olhar de
frente
com toda a inspiração
do meu passado, e estar
à altura dos mortos,
na zona
esplêndida e vasta
da sua nobreza -
receber essa espécie de força
indestrutível
que envolve a cabeça
montada sobre os dias e dias,
de que as rosas
bebem o jeito aéreo e a boca
a delicadeza
misteriosa.
Existem árvores
cercando os animais sonhadores, o grande
arco das eras com os
fogos rápidos
presos como
campânulas, e a fixa vontade
do homem ardendo e
gelando
no tempo. À beira dos
rios canta-se ou deixa-se
que as mãos se
gastem, deslumbradas
do seu poder, da sua
grande miséria
como um sonho. Um
nome, contudo, existe
suspenso sobre as
estações do ano. Essa cabeça
dos mortos - a tua
cabeça aérea como o verde
das pedras ou o
movimento
das corolas frias,
essa cabeça
sumptuosa, rodeada de estreitas
víboras -
sobe do nosso, do meu
coração, até que a minha
mesma cabeça
nada mais seja que a
possessiva, doce cabeça
dos mortos.
Herberto Helder de A Colher na Boca em Poesia Toda 1º Volume
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