Já aconteceu o
25 de Abril, Mário-Henrique está em Carcavelos e no dia 18 de Setembro de 1974
escreve à «Menina Isabelinha do Carrapito».
Começa por a
informar que recebeu o pacote com as pastilhas ant-reumátivas. Chama-lhe
benfeitora, «como dizem os ceguinhos quando lhes dão 5$00… Muito obrigado,
minhe benfeitora! (nessa altura a benfeitora, muito chareada, tira a bengala ao
ceguinho e dá-lhe um pontapé no cu.»
A meio da carta,
Mário-Henrique, com o humor negro habitual, entra a fazer o ponto político e termina-a, de um modo fulminante, a falar da mãe da tia que vivem com ele em Carcavelos;
« Quanto á minha
posição, saberás que me estou a radicalizar ao uso de “la Sud-América”. O PC
está a adaptar-se oportunisticamente. Todos sabemos que o poder nunca se tomou eleitoralmente
(vide erro chileno) e que isto de ter um ministro “comunista” (?) no governo
liberal-burguês chega a dar vontade de rir… embora o PC seja, actualmente, o
partido mais forte e bem organizado Mas essa força e organização, por medidas
de táctica eleitoreira, começa a voltar-se contra os trabalhadores realmente
revolucionários. Então que é isto? Não há dúvidas que o meu velho camarada
Palma Inácio está certo, certíssimo. E a minha experiência pode ser útil…
… porque isto de
andar em reuniões inúteis, a colar papéis, a aconselhar os camaradas
trabalhadores a “não fazer greve porque é prejudicial à economia da nação”
(leia-se “economia do poder capitalista”…) a andar aos beijinho aos filhos da
puta das forças armadas (que no mês passado mataram pura e simplesmente a tiro
um companheiro), a dizer que a revolução dos cravos foi linda /detesto o fedor
dos cravos), isto não me serve…
Democracia à
moda ocidental, claro, liberdade de imprensa (já tive três textos cortados),
tudo isto está lindo. Não para mim, que não sou democrata desse jeito. Nem de
jeito nenhum, já que nada tenha a ver com democracias…
Pois é, menina,
desabafei.
E agora cá por
casa:
A Jovília lá vai
andando, com o seu cancrozito eficiente. Agora, como não tem dores, até pensa
que já não é. Deixá-la pensar. Fez 11 (onze) radiografias a semana passada.
Fiquei pasmado. Tanta radiografia para quê? Bem, afinal todo o mundo precisa de
ganhar a vida, não é? Também fez uma biópsia, esteve internada 10 dias e já
está em casa. No dia 26 vai fazer mais qualquer coisa que não sei o que é.
Afinal, o que é preciso e fazer até morrer, conforme dizem os professores de
moral.
A mãe, com uma
gripe gigantesca, mas insiste em ir à praça. Eu deixo, talvez morra mais
depressa.
Eu, um pouco
pifado. Os camaradas, dado que eu andava pelo já não perceber nada do que me
diziam e aos tombos mais ou menos incerto, arrastaram-me a um especialista não
sei de quê, ontem. O homem disse-me várias coisas, pôs-me nú (Vê lá tu!)
apalpou-me e parece que me explicou fosse lá o que fosse. Não me lembro.
Mandou-me fazer várias análises e um encéfalo-não-sei-quê. Disse logo que sim,
claro, que eu não sou doido. E pronto. É o fazes.
Como vês, por
aqui tudo óptimo.»
Mário-Henrique
Leiria em Depoimentos Escritos
Legenda: desenho de Mário-Henrique Leiria tirada de Mário-Gin-Tónico Volta a Atacar.
Legenda: desenho de Mário-Henrique Leiria tirada de Mário-Gin-Tónico Volta a Atacar.
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