terça-feira, 24 de julho de 2018

SE TIVER OLHOS PARA VER E SE OS QUISER USAR:


E a glória? Essa miragem que tira o sono a tan­ta gente?
 Manda-me a prudência calar o que penso da gló­ria e, muito principalmente, do que tantos fazem para atingi-la. Lá viria o «estão verdes». Fatalmen­te. E sei lá se com razão. Nunca a gente se conhe­ce bem até ao fundo.
 Direi só, serrazinento, que a acho dama engana­dora e tanto mais na época das grandes montagens publicitárias, com poderosas ligações multinacio­nais, tudo o que vem é ganho, etc. e tal. Uma fa­mosa escritora (não só) policial pensa acertadamen­te que «talvez para um escritor muita da sua sorte venha do facto de ter a publicidade certa no mo­mento certo». Publicidade. A explicação de (quase) tudo. Num livrinho que me interessou bastante, sobre a fabricação (será o termo exacto) de contos e romances, não forçosamente policiais, a mesma autora emprega com sintomática frequência o ver­bo ou a ideia de «vender» onde até agora se tem dito, por exemplo, «agradar»: «para conseguir ven­der...», «encontrar um mercado para isto», «uma história que se venderá», «um livro é tanto mais facilmente vendido para televisão e cinema, se...», se «se pretende um determinado mercado...» 
 Pobre do livro transformado em vistoso objecto de consumo. Pobres de todos nós. «Já leste?», «Não, mas tenho lá para ler. Parece que é muito bom». E as edições saindo, tanto melhor assim, e as traduções também (certos agentes são duma criatividade de deixar a boca aberta), e Portugal transformando-se, que me dizem a isto?, num vi­veiro de criadores com manifesta surpresa da Euro­pa e arredores. Um quinto império no papo. Ape­sar da língua aos tropeções, sob vários aspectos, não se fala agora nisso, quem cá ficar verá. Se tiver olhos para ver e se os quiser usar.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda: Mário Dionísio e João José Cochofel, fotografia tirada de Autobiografia

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