Quatrocentos Mil Sestércios Seguido de O Conde de Juno
Mário de
Carvalho
Editorial
Caminho, Lisboa, Abril de 1991
Poderia ter passado aqueles dias em perfeito sossego
sem dar azo a Fortuna a que se intrometesse comigo. Qualquer coisa, qualquer
vento inopinado, qualquer espírito rebarbativo, fez com que desabassem sobre
mim – quieto e sossegado que gostaria de ser – trabalhos semelhantes aos de
Hércules, se tomarmos em conta a desproporção das forças.
Foi à última hora que meu pai me comunicou que ia
partir, por uns dias, para Olisipo por causa de uma demanda sobre uma remessa
de trigo avariado. Nunca percebi se, na pendência, ele fazia de Autor ou de
Réu e fui, certamente, o último da casa a saber a notícia. Mesmo depois dos
escravos, mesmo depois da infame Lícia…
Eu reparei nos preparativos: vi o Jálio a olear a
lança, vi o Clíton a amontoar bagagens, tropecei num molho de gládios a um
canto… Mas, francamente, nunca chegava a penates suficientemente cedo ou
suficientemente sóbrio, para ter oportunidade de ouvir explicações. Também
estava acostumado a dar pouca importância ao que ia lá por casa...
Na véspera da partida, meu pai acordou-me brutalmente
ao nascer do Sol. Abriu as portadas de par em par, com estrondo, e proclamou:
«Começou o dia,» «O meu dia é particular, começa mais tarde», respondi eu,
tapando-me o mais possível. O meu pai sentou-se no leito e pigarreou. Percebi
que não tinha outro remédio senão ouvi-lo e encarei-o, toscanejando e
mal-humorado.
- Estás a preparar-te para envelhecer cedo, não é,
filho? – suspirou, passou a mão pela cara, já escanhoada, numa preocupação
dorida, enquanto eu pensava. «O que é que teria feiro, o que é que teria feito
desta vez?»
Podia estar tranquilo. O pai não desconfiava de nada
sobre o roubo da coroa de louros da estátua do imperador. Nem da assuada à
porta do…
- Escuta, meu imbecil – disse-me ele, fazendo
ostensivamente um grande esforço para falar com clareza e ignorando o meu ara
amuado, de braços cruzados. – Tenho de ir a Olissipo. Uma demanda sobre… enfim…
assuntos demasiado complicados para a tua pobre cabeça. Apesar de seres o
pateta que és, corrécio e bêbado, julgo meu dever avisar-te, prevenindo os
percalços de uma viagem destas sempre implica, de que Lentúlio me deve
quatrocentos mil sestércios, já contados os juros e os juros de juros.
- O magarefe?
- O magarefe! A dívida vence-se depois de amanhã. Eu
não posso ficar mais tempo, porque tenho de me apresentar no pretório de
Olisipo nos próximos cinco dias, nem tenciono nomear procuradores, porque me levam
os olhos da cara e não há necessidade disso, estando cá tu…
- Por que é que não mandas um escravo?
- Um escravo? Cobrar quatrocentos mil sestércios? Mas
que ofensas teria eu cometido aos deuses pata ter um filho tão parvo?
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