Comprar livros
pelos seus começos, comprar livros pelos seus finais, comprar livros por uma
frase, uma página, comprar livros pelas capas, comprar livros, signo diário de
quem privilegiado se constitui por ter nascido e vivido numa casa em que havia
uma pequena estante com livros.
Aqui pelo Cais estivemos
para apresentar começos e finais de livros, mas depois optámos por Olhar as
Capas porque englobava tudo.
Maria Gabriela
Llansol, e o começo do seu livro no seu livro Na Casa de Julho e Agosto:
«O começo de um
livro é precioso. Muitos começos são preciosíssimos. Mas breve é o começo de um
livro – mantém o começo prosseguindo. Quando este se prolonga, um livro
seguinte se inicia. Basta esperar que a “decisão da intimidade” se pronuncie.»
Ocorrem-me,
entre tantos e tantos, dois excelentes começos de livros de autores portugueses
O Ano da Morte de Ricardo Reis de José Saramago:
«Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, como uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na viagem, ainda tocará em Vigo e Boilogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual aldeia. Não é grande embarcação, desloca catorze mil toneladas, mas aguenta bem o mar, como outras vezes se provou nesta travessia, em que, apesar do mau tempo constante, só os aprendizes de viajante oceânico enjoaram, ou os que, mais veteranos, padecem de incurável delicadeza do estômago, e, por ser tão caseiro e confortável nos arranjos interiores, foi-lhe dado, carinhosamente, como ao Highland Monarch, seu irmão gémeo, o intimo apelativo de vapor de família. Ambos estão providos de tombadilhos espaçosos para sport e banhos de sol, pode-se jogar, por exemplo, o cricket, que, sendo jogo de campo, também é exercitável sobre as ondas do mar, deste modo se demonstrando que ao império britânico nada é impossível, assim seja a vontade de quem lá manda. Em dias de amena meteorologia, o Highland Brigade é jardim de crianças e paraíso de velhos, porém não hoje, que está chovendo e não iremos ter outra tarde. Por trás dos vidros embaciados de sal, os meninos espreitam a cidade cinzenta, urbe rasa sobre colinas, como se só de casas térreas construída, por acaso além de um zimbório alto, uma empresa mais esforçada, um vulto que parece ruína de castelo, salvo se tudo isto é ilusão, quimera miragem criada pela movediça cortina das águas que descem do céu fechado».
Os Cus de Judas de António Lobo
Antunes:
«Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do
ringue de patinagem sob as árvores e do professor preto muito direito a
deslizar para trás no cimento em elipses vagarosas sem mover um músculo sequer,
rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas, que, se falassem, possuíam
seguramente vozes tão de gaze como as que nos aeroportos anunciam a partida dos
aviões, sílabas de algodão que se dissolvem nos ouvidos à maneira de fins de
rebuçado na concha da língua.»
E obviamente não
posso deixar de lembrar o magistral começo de O Fogo e as Cinzas de Manuel
da Fonseca:
«Antigamente, o Largo era o centro do mundo.»
Todo este
escrevinhar porque hoje, por mor de algo que precisava consultar, peguei em OsNus e os Mortos, grande livro de Norman Mailer que tem um começo muito bem
conseguido:
«Ninguém podia dormir. Mal rompesse a manhã as lanchas
de assalto seriam lançadas ao mar e a primeira vaga de tropas cavalgaria a
rebentação e atacaria as praias de Anopopei. Em todo o comboio, em cada um dos
barcos, os homens sabiam que dentro de poucas horas muitos deles estariam
mortos.»
São assim os
livros, nossos companheiros de todas as horas.
Ou como escreve
José Saramago em A Caverna:
«Felizmente existem os livros. Podemos esquecê-los numa prateleira ou num baú, deixá-los
entregues ao pó e às traças, abandoná-los na escuridão das caves, podemos não
lhe pôr os olhos em cima nem tocar-lhes durante anos e anos, mas eles não se
importam, esperam tranquilamente, fechados sobre si mesmos para que nada do que
têm dentro se perca.»
Foi o que
aconteceu com o livro do Norman Mailer.
E, de repente,
saltou o começo.
Sem comentários:
Enviar um comentário