quinta-feira, 2 de maio de 2019

E ENTÃO O QUE SE HÁ-DE FAZER?



A fotografia e o respectivo texto fazem parte da Auto-PhotoBiografia (não autorizada), escrita e montada pelo próprio Mário Viegas.

Seguimos a cronologia do Mário e terminamos hoje a evocação do 25 de Abril, nos dias de há 45 anos, para essa evocação utilizámos uma série de recortes de um dossier caseiro.

Mas não queremos findar a evocação sem ir buscar um texto, já aqui publicado, e que evoca um importante documento que regista as horas do começo da revolução, numa brilhante reportagem de Adelino Gomes.

Sobre as patentes militares e os muitos capachos que serviam a ditadura, os tenreiros, os cazais-ribeiro, existe este texto publicado, há 45 anos,  e que desconheço o autor:

 «Massacravam-nos os ouvidos com afirmações de coragem.
Diziam que, se alguma vez o chamado estado Novo corresse perigo. Iriam dar tiros para a rua.
«Afirmavam-se prontos a morrer.
Juravam, rejuravam e trejuravam que o Povo só chegaria ao poder passando por cima dos seus cadáveres.
Gritavam aos quatro ventos que iriam vender cara a vida.
Consideravam-se soldados de uma guerra gloriosa.
Não perdiam uma ocasião de proclamar o desejo que tinham de provar a sua fidelidade vertendo, para tal o seu próprio sangue.
Arrotavam postas de valentia.
As suas permanentes gabarolices, infantis e monocórdicas, tinha-nos levado a crer que, no dia da mudança, iriam fazer qualquer coisa.
Dar um grito, por exemplo – um grito, um suspiro, um soluço.
Mas nem isso.
No dia vinte e cinco de Abril, os heróis do palavreado não cumpriram uma única das promessas que tinham feito.
Perderam o pio.»

Os militares, apoiantes do regime, mostraram a sua incompetência e desorientação: no disco, existe um qualquer oficial a sugerir ao posto de comando a utilização de meios aéreos.


GUIDA DA MÚSICA DP 050/2
Edição conjunta Seara Nova e Sassetti
Reportagem: Adelino Gomes, Paulo Coelho, Pedro Laranjeira
Narração: João Paulo Guerra
Montagem: Pedro Laranjeira
Capa: Acácio Santos

Este disco é um documento histórico.

O pano de fundo, desde duplo álbum, é a reportagem que Adelino Gomes, Paulo Coelho e Pedro Laranjeira realizaram, no dia 25 de Abril de 1974, enquanto decorria o cerco, pelas tropas do capitão Salgueiro Maia, ao quartel do Carmo.

Um tempo em que não havia telemóveis nem directos televisivos.

Um reportagem registada directamente para um gravador, ao sabor dos múltiplos e constantes acontecimentos, que marcaram aquele dia.

Adelino Gomes refere, várias vezes, a falta de informação com que se debate, mas regista tudo o que vê e ouve, e fá-lo com a emoção de ver arredados para o lado quarenta e oito anos de ditadura, se bem que no momento em que ele faz a reportagem nada fosse assim tão claro.

As pessoas vão entrando pelo Terreiro do Paço. Vê-se que as pessoas aderem a esta situação como uma festa, assim como uma pedra que sai de cima das pessoas, sentem-se aliviadas. Tudo isto é um pouco surrealista, à maneira portuguesa, as pessoas participam, assim como assistissem a uma peça de teatro, ou a um filme.

Ouve-se um popular dizer: isto é só o início. Um outro: porreiro, pá!, algo que muitos anos depois, um tal de José Sócrates, por ocasião da assinatura do Tratado de Lisboa, dirá a Durão Barroso.

Diariamente enchiam-nos os ouvidos com palavreado e grandes frases.

Diziam que, se alguma vez, o regime corresse perigo, iriam para a rua dar tiros, prontificavam-se a morrer, se necessário.

Soube-se, então, que não era a ditadura que era forte, a oposição é que era fraca.

Naquele dia 25 de Abril, não apareceram.

Fugiram para onde lhes foi possível.

Perderam a gabarolice, cagaram-se todos.

E os que apareceram estavam completamente desorientados.

É isso que ressalta das comunicações entre o Quartel-General e as poucas tropas, afectas à ditadura, que estavam nas ruas.

O repórter aborda dois soldados, fiéis ao regime.

Um diz: praticamente não sei o que estou aqui a fazer, praticamente não sei de nada.

O alarme tinha soado às 04,30 horas.

As ordens eram para disparar sobre qualquer acção inimiga que nos apareça.

Ninguém deu essas ordens, tão pouco sabiam quem  era o inimigo.

- Urgente. Escuto!

- O Chiado está fechado por viaturas saídas do Terreiro do Paço. O Largo do Carmo está cheio de viaturas, canhões apontados para o quartel. A situação é esta: só tenho aqui com viaturas, dois pelotões da Guarda e o resto da tropa apeada, Infantaria 1 foi para o Rossio e levaram os carros e não tenho contacto com eles.

- E então o que é que se há-de fazer?


- Não sei. Escuto. Não vejo solução… talvez aguardar…

- A nossa  posição é um tanto ou quanto ridícula. Estamos todos juntos aqui no Largo da Misericórdia aparentemente divorciados do resto da guerra. Tenho a impressão, salvo melhor opinião, que seria conveniente regressar a quartéis.

- Creio que há um ultimato até às 2 horas para entregar o Presidente do Conselho. Não sei se é verdade. Escuto.


- Que possibilidade vê de prosseguir a acção, com que meios, porventura, pôr à sua disposição.


- Não vejo possibilidade porque está tudo atravancado. Consegui limpar aqui o largo mas há muita população aqui metida no meio que não nos hostiliza porque julga que estamos do outro lado. Situação um bocado delicada de forma que não vejo bem maneira, a não ser com meios aéreos que possa limpar um bocado aquilo, porque a infiltração não me perece viável. Escuto!


Completamente perdidos.

A revolução avançava. Em pleno clímax, Adelino Gomes pergunta a um tenente-coronel: não houve rendição por parte das forças que estão sitiadas. O oficial rápido: “Porra! Vocês são uns chatos, não deixam de fazer perguntas. Uma senhora está a dar à luz e vão perguntar à senhora se ela está com dores?

Assim mesmo, um repórter no meio de uma revolução a fazer o seu trabalho.

A reportagem regista ainda as palavras de Francisco Sousa Tavares, empoleirado numa árvore, no Largo do Carmo, megafone na mão:

Começamos hoje uma vida nova, uma vida de liberdade.

Seria o primeiro comício dos novos  tempos que despontavam.

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