Continuando o
caminhar pelo livro de Joaquim Vieira José Saramago, Rota de Vida, Vieira
escreve sobre as crónicas que José Saramago começa a escrever para A
Capital:
«A censura era, por outro lado, o pesadelo do costume.
Algumas das crónicas foram parcialmente cortadas, como a que publica a 17 de Maio
de 1968 sob o título «As palavras» (acerca do poder e do significado da
linguagem), expurgada por um censor demasiado zelosos de uma parte substancial
do último parágrafo – toda aquela em que pretendia introduzir o conceito de um
antónimo: «Há também o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se
ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O Silêncio é
fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada
sob a luz solar.»
As crónicas que
José Saramago publicou em A Capital, estão reunidas em Deste Mundo edo Outro.
Transcrevemos a
crónica:
« As
palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem
desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas,
trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes.
Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças: vêm nos livros,
nos jornais, nos slogans publicitários, nas legendas dos filmes, nas
cartas e nos cartazes. As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam,
impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. O mundo gira sobre
palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de
palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as
pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas
palavras.
E há os discursos, que são palavras encostadas umas às
outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até ao prego
final do Disse ou Tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem
e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou dispõem bambinelas de veludo.
São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem
louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E depois as palavras dos
discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão - e
por essa via entram na imortalidade do Verbo. Ao lado de Sócrates, o presidente
da junta afixa o discurso que abriu a torneira do marco fontanário. E as
palavras escorrem tão fluidas como o «precioso líquido». Escorrem
interminavelmente, alagam o chão, sobem aos joelhos, chegam à cintura, aos
ombros, ao pescoço. É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de
milhões de bocas. A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos
gritos, aos uivos, envolta também num murmúrio manso, represo e conciliador. Há
de tudo no orfeão: tenores e tenorinos, baixos cantantes, sopranos de dó de
peito fácil, barítonos enchumaçados, contraltos de voz-surpresa. Nos
intervalos, ouve-se o ponto. E tudo isto atordoa as estrelas e perturba as
comunicações, como as tempestades solares.
Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra
é dita para que não se oiça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma,
afirma-se. A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é erva fresca
e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos
furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça.
Daí que seja urgente mondar as palavras para que a
sementeira se mude em seara. Daí que as palavras sejam instrumento de morte –
ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do acto.
Há também o silêncio. O silêncio, por definição, é o
que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O
silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a
melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras.
As palavras boas e as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão.
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