quinta-feira, 30 de maio de 2019

UM LIVRO EM CIRCULAÇÃO CLANDESTINA


Atravessei depressa a juventude.
Tinha duas coisas- a alegria e o terror.
Percorri-os sem tomar fôlego.
Quando cheguei ao outro lado, encontrava-me em frente da maturidade- estupefacto.
Não conhecia os nomes nem as subtilezas.
Falando com certas pessoas eu dizia: conheci a alegria e o terror.
Elas sorriam.
Parece que eram sábias.
Ou estúpidas.
Nada sei disso.

Excerto de poema de Herberto Helder em Apresentação do Rosto.
Nunca consegui encontrar este livro de Herberto Helder. Melhor: encontrei-o, há dias, à venda na Loja Frenesi, mas custava 420,00 euros, completamente fora do orçamento e já não me posso sacrificar porque, medicamente, fui proibido de comer salsichas Isidoro, qual alheira de Mirandela, como naquela canção do Fausto, nem num dia quanto mais salsichas numa série de dias, não sei quê os triglicéridos, qualquer coisa assim…

Este é o texto que copio da Frenesi:

HERBERTO HELDER
capa de Espiga Pinto

Lisboa, Maio de 1968
Editora Ulisseia Limitada
impresso na tipografia do «Jornal do Fundão» de António Pauloro
1.ª edição
18,8 cm x 12,4 cm
220 págs.
reproduz na badana uma das raras fotografias do Autor
exemplar muito estimado; miolo limpo, parcialmente aberto
PEÇA DE COLECÇÃO
420,00 eur (IVA e portes incluídos)

Trata-se do livro mítico que HH tentou, ao longo dos anos, fazer desaparecer da sua bibliografia. Apreendido pela polícia in situ na casa editora, poucos volumes sobreviveram, quer à rusga quer ao próprio Autor. Hoje em dia – após um árduo percurso de escassa circulação clandestina – aqueles que surgem à venda são quase sempre os mesmos exemplares, que têm vindo a passar de mão em mão dos coleccionadores.
Exactamente devido a um historial assim, o renegado livro mereceu do poeta Manuel de Freitas um estudo que a casa & etc tornou público: Uma Espécie de Crime: Apresentação do Rosto de Herberto Helder (Lisboa, 2001).
Na época, a poucos dias de surgir o livro no mercado, HH respondia assim a uma entrevista conduzida por Maria Teresa Horta (A Capital, suplemento «Literatura & Arte», Lisboa, 10 de Abril de 1968):
«Com uma nova alegria no rosto, uma nova confiança nas suas palavras, Herberto Hélder fala-nos pausadamente, responde sem hesitações.
– Diz-se que tem um romance a sair brevemente, é verdade?
– Não é um romance. Pelo menos se considerarmos as noções do romance tradicional... É antes uma montagem de textos de natureza autobiográfica, tendo uma unidade subjacente de sentido e uma unidade evidente de estilo.
[...] A necessidade de escrever prosa parece ter-me surgido durante certo tempo de experiências muito concretas cuja essência eu ainda não apreendera, mas cujo carácter muito concreto e imediato pedia que fosse expresso. A poesia, para mim, não me parecia o melhor meio de revelar esta experiência e dela me libertar. Além disso, um ritmo novo aparecera na minha linguagem. Eu não sabia como adaptá-lo ao que considerava o meu ritmo pessoal de poema. [...]»
Surgia, então, este livro num momento em que, por assim dizer, o Autor encerrava um ciclo, e que se resumia à edição, também então recente, da sua “poesia toda” sob o título Ofício Cantante (Portugália Editora, Lisboa, 1967).

Herberto Helder sempre foi um autor estranho.
Nunca consegui saber - ou sei?! -  das razões porque entendeu correr com este livro da sua bibliografia.
Claro que sempre dizia que se quisesse enlouquecia pois sabia uma quantidade enorme de histórias terríveis…

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